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O arranque da aula

Num dos seminários com o seu reduzido grupo de mestrandas-estagiárias, com o ano lectivo já a caminho do fim, o Professor S., ao querer ainda entusiasmá-las com o “formato de história” de Kieran Egan, realçava a importância de haver uma estrutura narrativa em todas as aulas. Tentava assim contrariar aquela teimosia de planificarem, segundo uma tecnocracia burocrática, em grelhas assépticas, sem-cor-nem-vida, cheias de objectivos, conteúdos e critérios de avaliação, mas onde era difícil vislumbrar a acção e o encadeamento temático. Ao abordarem os três tempos fundamentais de uma aula – abertura, desenvolvimento, fecho – deu-se conta de que o seu padrão de ensino valorizava sobremaneira o arranque da aula. De facto, levava mais tempo a prepará-lo do que aos outros momentos lectivos.
Em todas as aulas, o Professor S. escrevia no quadro, a cores, o número da aula, a data, a epígrafe, a agenda e as sugestões (livros, artigos de jornal, filmes, etc.) enquanto nós íamos entrando, abrindo os cadernos/computadores, desligando os telemóveis e concluindo as conversas. Quando acabava de encher o quadro, a turbulência natural da entrada tinha acalmado. O silêncio indiciava que estávamos prontos para a aula, propriamente dita.
No início daquele mês, à frente da data escreveu “Maio, maduro Maio” e “Favas: Maio as dá, Maio as leva”. Lá tentámos explicar cada uma delas, mas quando nos solicitou as relações entre o EP de 1971 de José Afonso e aquela expressão de sabedoria popular, embatucámos.
Seguiu-se a epígrafe, naquele dia dedicado às identidades: “Sou três vezes apátrida! Enquanto nativo da Boémia na Áustria, enquanto austríaco na Alemanha e enquanto judeu em todo o mundo”. A frase do compositor Gustav Mahler foi acompanhada pela audição do adagietto da sua Sinfonia no 5, usada como banda sonora no filme “Morte em Veneza”, de Luchino Visconti. Não conhecíamos ninguém! Mas tal não impediu o debate vivo e acalorado do costume.
Essa desmesurada preocupação com o início das aulas vinha-lhe, afinal, do seu longínquo estágio no Ensino Preparatório, nos primórdios de 80, quando um dos modismos da época era a ‘motivação’. Tudo se jogava no arranque das aulas, então fatiadas em 50 minutos. Recordava-se bem do tempo que o grupo de estágio (composto de seis estagiários e dois orientadores) gastava a arranjar posters, cartazes, canções, mapas e mais isto e aquilo, num bricabraque didáctico que tinha por principal objectivo “agarrar” os alunos para a matéria que se seguiria.
Depois, o “pêndulo curricular” moveu-se em sentido contrário; os pedagogos que defendiam o “ensino centrado nos alunos” punham em causa essa técnica, pois, argumentavam, a ‘motivação’ devia estar presente ao longo de toda a aula e ser intrínseca, ou seja, o professor pouco podia fazer para a fomentar! O que prescreviam era assim uma espécie de “luta contínua” contra a distracção e o tédio, querendo-os motivados em permanência para uma aprendizagem continuada, em trabalho autónomo, claro está. O problema do “pêndulo” é que ele balança entre extremos quando o que se exige, em Educação, é a ‘arte e o engenho’ do ponto de equilíbrio, do bom senso.
O Professor S. treinou tanto a ‘abertura’ como descurou o ‘fecho’ das lições. Quando já efectivo no Preparatório, as suas aulas acabavam quando tocava a campainha ou, na melhor das hipóteses, com o sumário a ser ditado por um dos alunos.
Anos volvidos, no Superior, onde não há campainha (nem sumário), o seu calcanhar de Aquiles continua a ser a forma como encerra as aulas. Os estudantes levantam-se como que accionados por um telecomando, o dos seus swatch topo de gama.
Hora de saída. Nem mais um minuto depois das três horas de aula – comportamento contrário ao da entrada, dos “intocáveis” 15 minutos de tolerância académica. Bem tentava o Professor S. elevar a voz para um aviso derradeiro (o habitual TPC): “Não se esqueçam de ver na Moodle a actividade para a próxima semana...” Claro que se esqueciam! E ele também – de treinar convenientemente o ‘fecho’ atempado das suas (tão apreciadas) narrativas didácticas.

Luís Souta


  
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