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Memória e memorização

O recurso aos termos “rigor” e “exigência” tem qualquer coisa de obsceno, na medida em que o ato menos rigoroso e exigente é aquele em que se utiliza o rigor e a exigência como instrumentos de manipulação da realidade. Um ato desonesto que se afirma quer na encenação dos exames do 4º ano, quer na discussão sobre os programas de Matemática.

No dia 24 de abril de 2013, o jornal Público anunciava que a “Memorização está de volta como um dos motores da aprendizagem”. Uma notícia onde se dá conta de uma das ideias fortes do pedagogo Nuno Crato, agora ministro da Educação, de que a memória não só não depende da compreensão dos factos, como esta mesma compreensão pode ser garantida, um dia mais tarde, pelos exercícios de memorização prévios que nos primeiros anos de escola as crianças tiverem que realizar. Pressuposto que Carlos Grosso – um dos autores dos programas de Matemática da era Crato – tão bem exemplifica na mesma edição, onde afirma que “a possibilidade de resolver bem um problema matemático é muito maior quando o aluno sabe a tabuada de cor”. Uma perspetiva que corrobora, mais uma vez, a posição de Crato, quando um dia (2006) escreveu que os “obstáculos ao desenvolvimento de rotinas e automatismos” eram um dos problemas maiores dos programas de Matemática que agora acabou por revogar. Ou seja, seria a valorização da memorização como estratégia pedagógica que permitiria redimir a educação do descalabro a que, segundo Guilherme Valente, o “eduquês” nos conduziu.
É um facto significativo, contudo, que alguém que, como Crato, tanto valoriza o exercitar da memória como condição da aprendizagem acabe por negligenciar esta competência fundamental quando os dados disponíveis contribuem para o desmentir. Por isso é que recordamos que em 1947, num tempo em que só uma pequena minoria de portugueses prosseguia estudos para além da 4ª classe, 76,75% desses privilegiados revelavam, no 2º ano do liceu, graves deficiências no cálculo (João Pedro Ponte). E que em 1958, 34% dos estudantes no mesmo ano de escolaridade tinham notas negativas a Matemática. Como é que os cultores da memória explicam tal insucesso, quando se sabe que a memorização da tabuada não constituía o problema desses alunos?
Se prosseguirmos o exercício que nos propusemos, constata-se igualmente, através do confronto com a análise que o Gabinete de Avaliação Educacional (GAVE) do MEC produziu sobre os pontos fracos do desempenho dos alunos nos exames nacionais de Matemática dos 9º e 12º anos, em 2010, que os problemas não têm a ver nem com a memorização, nem com a ausência de domínio de procedimentos e rotinas. Nesses exames, os alunos mostraram dificuldades quer na realização de operações como analisar, argumentar e relacionar (Matemática A) ou transferir, relacionar, analisar, interpretar e demonstrar (Matemática Aplicada às Ciências Sociais), quer na utilização de estratégias pouco habituais no domínio da resolução de problemas matemáticos.
Uma conclusão que tanto confirma a análise dos relatórios referentes ao Programme for International Student Assessment (PISA, 2003 e 2006) como os equívocos e os preconceitos presentes nas reflexões e propostas de Nuno Crato e daqueles que comungam das suas ideias.
Neste momento, face a tais equívocos e preconceitos, poder-se-ia falar de falta de memória. Uma interpretação inexata, na nossa opinião, já que a faltar alguma coisa, seria exigência e rigor na abordagem dos dados disponíveis. Lacuna que, em larga medida, se explica em função do posicionamento ideológico do ministro.
Isto é, o facto de Crato não valorizar a classificação dos alunos portugueses do 4º ano de escolaridade nas provas do Progress in International Reading Literacy Study (PIRLS, 2011) – 13º lugar, entre 50, ex-aequo com Israel, Itália e Alemanha e sem diferença estatística significativa face à Holanda, República Checa e Suécia – é, mais do que a expressão da falta de rigor, uma afirmação subliminar de princípios.
A mesma atitude está presente na desvalorização do facto de, nas provas em questão, Portugal ter obtido melhores resultados do que a Nova Zelândia, a Áustria, a França, a Espanha e a Noruega; e, igualmente, face às provas do Trends in International Mathematics and Science Study (TIMSS, 2011), relativas à Matemática, onde, mais uma vez, os alunos do 4º ano obtiveram o 14º lugar (em 50), sendo Portugal o país que mais evoluiu, de 1995 até hoje, nos quatro níveis de aferição considerados. O que obriga a perguntar porque é que, face a tais resultados, ficar à frente da Alemanha, Irlanda, Suécia, Noruega, Nova Zelândia e Espanha apenas suscitou indiferença?
Uma pergunta que se poderia repetir, também, face às provas que os mesmos alunos realizaram na área das Ciências, onde se situaram no 16 lugar, e sem uma diferença estatisticamente significativa para a Inglaterra (13o), sendo Portugal o segundo país que mais evoluiu no domínio em causa, à frente da Irlanda, Austrália, Bélgica (flamenga), Espanha, Polónia e Noruega.
Como se explica esta atitude, tendo em conta o que Nuno Crato escreveu (2006) acerca do mau desempenho dos alunos portugueses, de 15 anos de idade, nas provas do PISA, nos domínios da Leitura, da Matemática e das Ciências? Uma atitude que contrasta com o quase silêncio que se fez sentir quando, nas mesmas provas, já em 2009, a evolução substantiva dos resultados portugueses levou a Organização de Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) a concluir que Portugal é o sexto país da organização cujo sistema educativo melhor compensa as assimetrias socioeconómicas dos seus alunos.
Podemos estranhar que um homem que tanto valoriza a memorização possa ter um desprezo tão descarado pela memória, ainda que esta constatação nos mostre, apenas, que a discussão sobre este assunto está longe de ser, somente, uma discussão pedagógica. Trata-se de uma discussão política fundamental, porque, como não parece ser difícil compreender, Nuno Crato não poderia reconhecer os resultados acabados de apresentar como factos positivos.
Impede-o, num primeiro momento, o projeto de Escola que defende, o qual terá de ser compreendido à luz da demarcação da Escola Pública como instituição assistencialista, que o discurso neoliberal, à boleia da crise da dívida soberana, tem vindo a legitimar, ao ponto de, nos dois últimos anos, o orçamento para a Educação ter decrescido de 5,7% para 3,8% do PIB. Impede-o, num segundo momento, a força do discurso antissubsidiariedade, que, em nome do princípio do utilizador-pagador, poderá constituir-se como a alavanca para o crescimento e afirmação de uma Escola Privada capaz de repor a ordem política, cultural e social que o 25 de Abril abalou.
Daí a necessidade de Nuno Crato, por um lado, esconder os êxitos nas provas de avaliação internacionais e, por outro, ser um cúmplice ativo de uma política que, de forma insidiosa e subtil, obstaculiza a repetição destes êxitos, seja através do aumento do número de alunos por turma, da falta de recursos para promover respostas de caráter remediativo e compensatório ou da criação de condições institucionais e organizacionais que tanto desmobilizam os professores como obstaculizam o diálogo e a partilha entre eles nas respetivas escolas.
É a partir deste momento que o recurso aos termos “rigor” e “exigência” tem qualquer coisa de obsceno, na medida em que o ato menos rigoroso e exigente que conhecemos é aquele em que se utiliza o rigor e a exigência como instrumentos de manipulação da realidade. Um ato desonesto que se afirma quer através da encenação que tem vindo a rodear os exames do 4o ano, quer através da discussão sobre os novos programas de Matemática.
No caso dos exames, e por muito que custe ao ministro, não é a deslocação dos alunos para escolas que lhes são estranhas que garante o rigor e a exigência dos mesmos. Como os resultados das provas internacionais comprovam, rigor e exigência são coisas mais difíceis de alcançar. Exigem investimento, planeamento estratégico e saber científico-pedagógico suficientes.
Quanto aos programas de Matemática, não basta acenar aos professores, como o ministro fez no Público que citamos, com a acusação de que esses programas, aprovados em 2007, são excessivamente prescritivos, sendo necessário propor outros que pudessem conceder “uma grande liberdade metodológica aos professores”. Intenção que Lurdes Figueiral, presidente da Associação de Professores de Matemática, põe em causa quando mostra como as metas entretanto aprovadas – que contêm mais de 190 objetivos gerais e 900 descritores, através dos quais se exprimem objetivos de aprendizagem circunscritos – acabam por ter um resultado distinto daquilo que o ministro da Educação anuncia relativamente à autonomia pedagógica dos professores.
Valorizemos, portanto, a memória como instrumento que nos conduza a beneficiar do passado, e não a ser subjugados por ele; um instrumento que, em vez de nos obrigar a dispensar a nossa inteligência e a de todos aqueles com quem partilhamos tantos dias e tantas horas, possa constituir-se como condição de afirmação da mesma.

Ariana Cosme e Rui Trindade

 

REFERÊNCIAS
Nuno Crato: O ‘eduquês’ em discurso direto: Uma crítica da pedagogia romântica e construtivista. Gradiva, 2006
Guilherme Valente: Os anos devastadores do eduquês: Contributo para a História da Educação depois do 25 de Abril. Editorial Presença, 2012
João Pedro Ponte: O Ensino da Matemática em Portugal: Uma Prioridade Educativa? – conferência no seminário “O Ensino da Matemática: Situação e
Perspectivas”
. Conselho Nacional de Educação, 28.11.2002


  
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