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Exames no 1º Ciclo: de pequenino...

A violência identificada com os “exames da 4ª classe” é intencionalmente dirigida à recuperação de valores que julgávamos banidos do sistema de ensino: o autoritarismo primário, o formalismo balofo, a subserviência incondicional, a hierarquização e a elitização social.

A generalidade da imprensa portuguesa fez eco, com relativo impacto na opinião pública, da imposição de exames finais de ciclo a todas as crianças que se encontravam no fim dos quatro primeiros anos de escolaridade. Esta inovação do ministro da Educação, reabilitando uma prática salazarista de má memória, que dava pelo nome de “exames de 4a classe”, não deve, em boa verdade, constituir surpresa. Não – evidentemente – pelas razões oportunistas que o Governo invoca (dar continuidade a medidas já tomadas pelo seu antecessor), mas, especialmente, pelo carácter das opções que têm vindo a assinalar o ministério Crato.
Na verdade, quem venha acompanhando com um mínimo de atenção a política educativa do XIX governo, designadamente a que se projecta no domínio curricular, em nada estranhará mais esta marca de violência simbólica que tem caracterizado a actividade governativa.
Tenha-se em atenção que a “violência simbólica” aqui invocada não o é a título da conceptualização que dela fez Pierre Bourdieu, ou não o é só. Não se pretende, de facto, interpretar esta re-imposição dos “exames da 4ª classe” como se ela representasse apenas uma manifestação da cultura escolar enquanto “arbitrário cultural”. Nessa perspectiva, o nosso juízo seria pouco menos do que benévolo, uma vez que deixaria sem questionamento o seu significado real. É evidente que os exames, quaisquer que sejam, enquanto artefacto introduzido no sistema escolar para promover a defesa da cultura dominante como a única legítima, em vez de outra ou de outras, representam sempre, necessariamente, um arbitrário cultural que se “naturaliza”, ocultando desta forma a sua violência. Mas, neste caso, a violência em questão dir-se-ia naturalizada, como se referiu, e assumi-la-emos como “clássica”, isto é, constitutiva da condição sociopolítica das nossas vidas e, como tal, sociologicamente inevitável.
A violência identificada com os “exames da 4ª classe” excede claramente o sentido bourdieusiano do termo, porquanto ela é intencionalmente dirigida à recuperação de valores que julgávamos definitivamente banidos do nosso sistema de ensino: o autoritarismo primário, o formalismo balofo, a subserviência incondicional, a hierarquização e a elitização social indispensáveis à reposição ou à conquista de privilégios. Basta atentar na documentação que regula a aplicação das provas, nomeadamente o Despacho Normativo no 5/2013, para se ficar com uma ideia de como os exames constituem uma oportunidade de eleição para doutrinar as práticas sociais.
Em nome de um saber escolar doravante fortemente policiado pelo fantasma dos exames que se tornam omnipresentes, não é, evidentemente, o saber em si que é valorizado, nem as competências humanas que lhe são inerentes. Muito mais do que isso, o que é valorizado e, como tal, objecto de interiorização sistemática, é o conjunto de valores psicossociologicamente associados ao sucesso escolar, de que se destaca a disciplina pessoal, o sentido da sujeição e o amor-próprio típico do “bom aluno”, que, como sabemos, não é um “bem” aleatoriamente distribuído no plano social. E, como é evidente, quanto mais precocemente tais valores sejam inculcados, maior é a vantagem para uma sociedade fortemente hierarquizada, como o Poder está apostado em refazer.
Por outro lado, tanto ou mais que os alunos, são os professores e as escolas que são examinados, o que não pode deixar de ter repercussões no clima e na cultura dos estabelecimentos, designadamente no sentido do autopoliciamento profissional e de uma cada vez maior preservação das estratégias pessoais.
Destas transformações esperáveis é indício muito claro o conjunto de medidas e episódios que caracterizaram a realização das provas de Português e de Matemática. Desde a linguagem escrupulosamente burocratizada até ao conjunto das figuras e agentes previstos para integrar o sistema no interior do aparelho e ao suposto e implacável rigor formal das medidas adoptadas, em nome de uma transparência que é em tudo a imagem invertida do que se passa no país, tudo aponta no sentido de promover os exames, desde a mais tenra idade, à condição de instrumento poderoso de biopolítica, sujeitando a Escola a rituais cada vez mais selectivos e formalizados.
Importaria, por isso, suscitar a este propósito uma ampla e acesa discussão sobre o modelo de exames que está em curso, pondo em evidência não apenas o seu formalismo, mas também a monopolização disciplinar e a consequente bipolarização do currículo, que converterá a breve trecho a cultura escolar numa prática inevitavelmente excludente. Será ainda esta Escola uma Escola Pública?

Manuel Matos


  
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