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Navegar à bolina

Tal como os nossos antepassados que inventaram este tipo de navegação, temos de inventar bordos que nos permitam, mesmo com percursos maiores e mais esforçados, levar as nossas naus a bom porto.

Para quem nunca se iniciou nas práticas da navegação à vela, explico que navegar “à bolina” quer dizer, em linguagem corrente, navegar contra o vento. Digo linguagem corrente porque, na verdade, nenhum barco consegue navegar à vela contra vento frontal. O barco tem de se posicionar de forma a que o vento não lhe chegue completamente de proa para então navegar “à bolina”, isto é, “fazendo bordos”, percursos à direita e à esquerda para ir progredindo para o rumo pretendido.
Usei esta metáfora da navegação à vela para me referir ao progresso da Educação, tal como a vejo nesta época de fortíssima crise económica. Não adianta repisar nos malefícios que têm as leoninas e injustas condições económicas que nos são impostas. Direi simplesmente que estamos a navegar com vento de proa. Forte e sem previsão de abrandamento. Este “vento contrário” manifesta-se, para além da descapitalização de recursos humanos e materiais das escolas, em cinco aspetos que parecem ter uma importância maior.

1. Há um revivalismo pedagógico conservador, homogeneizador e transmissivo. Setores importantes e com capacidade de decisão promovem ideias conservadoras. A lista é longa, mas resume-se à ideia de que a Educação precisa de recuperar credibilidade e qualidade. O termo “recuperar” é muito revelador: significa que já teve e que perdeu. Ora, nenhum dos problemas atuais da Educação se pode resolver com recurso a fórmulas antigas. Por razões simples: os problemas são diferentes “em género e número” – os alunos não são os mesmos, o conhecimento não é o mesmo, a sociedade não é a mesma e as metodologias não podem ser as mesmas. Recorrer a um ensino que valorize a transmissão e a homogeneidade – como nos “bons velhos tempos” – revela incapacidade de pensar a partir de onde se está. E quem não pensa a partir do lugar onde está corre o risco, mais do que provável, de não entender para onde se pode ir.

2. Há uma tendência para crer que a equidade é para os pobres e a inclusão para os “deficientes”. Quando os relatórios internacionais nos apontam para a premência da promoção da equidade e da inclusão, verificamos que as medidas efetivas e estruturais sobre este assunto são tíbias. Pensa-se que deve haver equidade porque há pessoas pobres; se não houvesse não seria preciso... Não se entende a grandeza e a ambição da equidade como algo ainda tão longe de alcançar. Conseguir que um aluno não seja descriminado pela sua condição ou situação é um objetivo complexo, que não se pode circunscrever a medidas avulsas ou em medidas “para os pobres”. De igual modo, a inclusão só é evocada quando existem alunos com condições de deficiência. Cabe dizer que não há alunos de “inclusão” e alunos que não são de inclusão. A inclusão é um valor que deve estar disseminado na Escola para todos os alunos, mesmo quando não existem as circunstâncias “legais” que permitiriam desencadear os serviços inclusivos.

3. Contra toda a evidência disponível (cf. documentos da OCDE, da UNESCO, ...), olha-se para os sistemas duais como uma esperança de melhoria educativa. No relatório sobre a Educação em Portugal, publicado pela OCDE em 2008, diz-se explicitamente que é necessário “limitar a orientação precoce e adiar a seleção académica”. É urgente, no nosso país, discutir a inovação e manutenção do Ensino Básico enquanto património de todos os alunos.

4. Responsabiliza-se exclusivamente o estudante pelo seu insucesso. Desabrocha na Escola uma ética liberal: a Escola faz o seu papel, o resto é com o aluno. Diz-se: “como a escola não pode fazer tudo”, a responsabilidade do sucesso pertence ao aluno. Há pouco tempo, um responsável de uma sociedade científica dizia que “à escola compete assegurar o acesso e ao aluno o sucesso”. Ao aluno compete chegar motivado, disciplinado, preparado, trabalhador e atento. O que se configura como um erro crasso é pensar que, nas condições de desenvolvimento pessoal e social existentes, um aluno possa ser plenamente responsabilizado pelos seus resultados escolares – e, portanto, autojustificar a sua exclusão e insucesso.

5. Por fim, a privatização da Educação. Perante a complexidade dos desafios da equidade e da inclusão, alguém honestamente acredita que a privatização – que anda nas bocas e nos corações de tantos decisores políticos – lhes pode responder competentemente?

E assim navegamos à bolina. Com ventos poderosos de proa. Mas que não nos impedem de navegar. Tal como os nossos antepassados que inventaram este tipo de navegação, temos de inventar bordos que nos permitam, mesmo com percursos maiores e mais esforçados, levar as nossas naus a bom porto.
Benjamin Franklin dizia que há três tipos de pessoas: as inamovíveis, as mobilizáveis e as que se movem. Nós contamos com as que se movem, as que navegam e, que mesmo a navegar à bolina, conseguem criar espaços de equidade, de inclusão, de criatividade e de cidadania – enfim, de qualidade – nas nossas escolas, fustigadas pelos ventos de proa.

David Rodrigues


  
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