É urgente e possível aproveitar as condições históricas que estamos a viver para mobilizar e articular setores das classes médias e populares em torno da defesa da Escola Pública. Isso passaria, desde logo, pela reinvenção progressista de uma nova aliança entre professores, pais e comunidade.
A crise a que estamos a assistir não é apenas mais uma crise do sistema capitalista. Em alguns contextos nacionais, essa crise financeira também é, de forma cada vez mais notória e dramática, uma crise económica, política, ética e cultural, ou seja, societal. Estamos a viver o desmantelamento dos mais elementares direitos sociais (sobretudo os que dizem respeito ao trabalho, à saúde e à educação). Sobrevivem hoje, com crescente vulnerabilidade e precariedade social e familiar, milhões de pessoas sem emprego e, por isso, sem nenhumas possibilidades de ter acesso a esses mesmos direitos. São «vidas desperdiçadas», como lhes chamou Zygmunt Bauman. Em Portugal, estamos agora a aproximar-nos do “Estado mínimo”, podendo as mudanças em curso surpreender (mesmo) os seus inspiradores mais ortodoxos. Não há qualquer pudor por parte dos atuais governantes em estar ao serviço de lógicas e interesses capitalistas contrários ao interesse nacional e em desprezar, tendo apenas como apoio uma legitimidade diminuída, os anseios e direitos mais elementares dos cidadãos e cidadãs. No que diz respeito às decisões para a Educação, as tensões são crescentes. Não há diálogo nem concertação social; os sindicatos deixaram de ser interlocutores decisivos; as associações científicas não veem os seus pareceres acolhidos, o mesmo acontecendo com o próprio Conselho Nacional de Educação; entre os professores cresce a desmotivação, a instabilidade laboral e o desemprego; as formas de avaliação estão cada vez mais subordinadas à produção de resultados mensuráveis e à remeritocratização elitista da Escola Pública; os exames externos são feitos numa idade cada vez mais precoce (agora já no 4o ano de escolaridade); a avaliação formativa foi definitivamente desvalorizada; a retração dos investimentos públicos é enorme... E tudo isso leva à exacerbação do solipsismo competitivo, que busca o sucesso pessoal ou a sobrevivência a qualquer preço, lado a lado com o aumento da alienação e da desumanização excludente. Mas há também coisas paradoxais. Por exemplo, as políticas de indução da privatização da educação, tão caras à ideologia dominante, enfrentam agora dilemas inesperados, como o fato de estas políticas se destinarem essencialmente à classe média e ser esta, precisamente, uma das classes mais afetadas pelo desemprego, pela diminuição salarial e pela regressão dos direitos sociais e culturais. É caso para falar de ideologia da privatização sem mercado – pano de fundo onde se inscrevem as tentativas, cada vez mais sistemáticas, de destruição da Escola Pública como projeto coletivo. Com efeito, a Escola Pública tem vindo a ser fortemente constrangida e posta em causa, não apenas como lugar de desenvolvimento pessoal e de reconhecimento (étnico, de género, de cultura, de classe social, de nacionalidade, de religião...), mas também, e sobretudo, como lugar de redistribuição e de justiça social e educativa. E isso com enorme indiferença pelo seu contributo histórico, que tem sido indispensável não apenas para o desenvolvimento pessoal como também para a construção e afirmação de projetos coletivos emancipadores e para a concretização de direitos sociais e culturais fundamentais. A justificação para mudar a Escola Pública, até há pouco tempo vulgarizada e divulgada por porta-vozes ao serviço dos interesses classistas dominantes, era a sua suposta perda de qualidade científica. Entretanto, esse discurso deixou de se ouvir nos termos habituais, mesmo porque as avaliações internacionais, que há anos são consideradas como referenciais legítimos para a qualidade, começaram a mostrar que os nossos alunos têm vindo a ter mais sucesso nas disciplinas consideradas centrais no currículo. Por outro lado, como referi, a obsessão ideológica privatizadora de tudo o que é público, voltada, também por isso, para o desmantelamento da Escola Pública, deparou-se de repente com um obstáculo, para já incontornável: o próprio empobrecimento das classes médias (tradicionalmente mais habituadas a tirar vantagens posicionais da escola pública) e a sua aproximação conjuntural às classes populares (tradicionalmente mais afastadas das lógicas e possibilidades de mobilidade social ascendente através da Escola). Neste contexto, a causa da crise da educação escolar pública já não é explicada pela suposta perda de qualidade, mas sim pela própria crise económica e financeira provocada pelos interesses mais espúrios do capitalismo financeiro (a que os nossos atuais governantes, sem pudor, submetem o país). E se estes interesses forem levados ainda mais longe, a destruição da Escola Pública poderá vir a traduzir-se num retrocesso civilizacional irreparável. Por isso, é urgente (e é possível) aproveitar as condições históricas que estamos a viver para mobilizar e articular setores das classes médias e das classes populares em torno da defesa da Escola Pública. Isso passaria, desde logo, pela reinvenção progressista de um nova aliança entre professores, pais e comunidade.
Almerindo Janela Afonso
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