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Óscar Lopes: 1917-2013

Óscar Lopes foi um homem bom. Este será o primeiro e porventura maior elogio dos muitos devidos nesta hora ao nosso amigo. E foi ainda um homem humilde como só os homens sábios sabem ser. Humilde no saber, era humilde nas certezas, sempre pronto a rever-se e a ensaiar novas soluções para o mar de interrogações por onde sempre navegava procurando persistentemente respostas, sem que isso implicasse perda de um norte ideológico que toda a vida procurou com persistência, estudo e abertura de espírito. A vida desafiava-o quotidianamente e todos os planos da realidade o interpelavam, por isso nunca se fechou numa única área do saber, nunca foi um rato de biblioteca, embora tivesse sido um leitor compulsivo, nunca se fechou ao chamamento do mundo, quer o mundo fosse a sua escola, a sua cidade, o seu partido, o seu país, o planeta, o cosmos. Tudo o interessava e por isso era tão fascinante ouvi-lo, sempre apaixonado pelo ato de pensar, falar, quer da história duma palavra, como da de um longínquo astro, quer de uma qualquer estrutura linguística, como de um verso de Camilo Pessanha, quer da música que tanto amava, como do último problema de lógica com que se debatia. Amava a humanidade e o mundo tão agreste em que lhe foi dado viver.
A curiosidade intelectual insaciável que o caracterizará faz dele, jovem professor de português nos liceus, já com duas licenciaturas feitas, um incansável estudioso da literatura e da língua. Começa por se dedicar à historiografia literária, publicando abundantemente já nos anos 40, mas, depois, a crítica literária da produção contemporânea atrai-o e ele torna-se um brilhante ensaísta, que publica nas páginas do Comércio do Porto, durante as décadas de 50 e 60, uma crítica extremamente original, atenta à materialidade formal do texto literário, na qual vai construindo o seu conceito singular de “realismo problemático ou dialético”, um realismo longínquo da tradição oitocentista e que para ele se manifesta sempre que a literatura resiste ao senso comum e produz um alargamento de mundos. Através desse exercício crítico vai afinando o seu conceito de que a leitura tem sempre um carácter provisório. Ler é fazer tentativas, é ensaiar sínteses, pontos de equilíbrio num palco de conflitos que um texto sempre constitui. Por isso, para Óscar Lopes, a leitura, em especial do texto literário, constitui um desafio para quem lê: “compreender, realmente, uma obra é compreender-se melhor.”
Esta tentativa de ler com propriedade e com instrumentos tão rigorosos quanto possível leva-o a mergulhar cada vez mais no estudo da língua. Nos anos 60, num clima intelectualmente adverso, impedido até por algum tempo de ensinar, controlado nos contactos, nos movimentos, na correspondência, em clima de grande solidão intelectual, Óscar Lopes torna-se um investigador de ponta no campo da linguística. Escreve, como bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian, a inovadora Gramática Simbólica do Português, em boa parte a partir das experiências que faz com os seus estudantes adolescentes, cruzando formalmente o ensino do português com o ensino da matemática. Quando, após o 25 de Abril, vê finalmente abrirem-se-lhe as portas da Universidade, será no campo da linguística que exercerá o seu magistério. Então jovem assistente universitária, eu não posso deixar de recordar o pasmo com que assisti a algumas das suas aulas de Linguística Matemática e Computacional que dava nos intervalos que a gestão de uma Faculdade (a nossa Faculdade de Letras do Porto) em quotidiano processo de mudança e democratização lhe permitiam, gestão que ele abraçou com o entusiasmo que punha em tudo.
Claro que todos nós o lembramos por essa obra fundadora de uma historiografia literária nova, de costas voltadas para a historiografia positivista imperante, que escreveu a duas mãos com o amigo de sempre, António José Saraiva, a História da Literatura Portuguesa, a qual contou com cerca de 20 edições e que formou gerações de estudantes de literatura em Portugal e no Brasil. Mas ela é apenas uma parte com mais visibilidade de uma obra muito mais vasta e complexa, até muito tarde desconhecida, deste homem do norte.
A bondade já aqui evocada de Óscar Lopes, fruto evidentemente da sua elevada dimensão ética, também decorre em grande medida do ensaísmo que sempre praticou em todos os domínios – ensaísmo no seu sentido etimológico de ensaiar, tentar, encontrar soluções e tentar de novo novas hipóteses. A sua bondade manifestava-se neste espírito de abertura, abertura ao conhecimento e ao diálogo com o outro. Das coisas que Óscar Lopes mais gostava era de trocar, debater, defender ideias e por isso ouvia o outro com uma disponibilidade sem limites: do aluno mais ignorante ao intelectual ou ao criador de maior renome. Ouvia-os com um interesse genuinamente idêntico, conjugando ao máximo os seus próprios preconceitos ou pressupostos ideológicos.
Assim me ouviu muitas vezes a mim, jovem impreparada nos primeiros anos da docência universitária, nos idos de 70; devo-lhe um mundo de lições: de ética, de vida cívica, de exercício de pensar, de humanidade, em suma. Devo-lhe eu e tanta, taIsabel Pires de Limanta gente do meio académico ou não. Como é desse meio que eu venho, trago aqui o testemunho de uma colega brasileira, que me chegou esta manhã por correio eletrónico e que sem sua licença prévia reproduzo aqui: Isabel, minha querida, Apesar de todas as agruras que o tempo vai impondo, imagino que a perda do grande homem e intelectual incomparável que foi o Óscar Lopes seja da ordem do inefável. É assim com aqueles que amamos, que respeitamos, que são uma espécie de fortaleza ética a atravessar os tempos. De longe, do outro lado do Atlântico, junto o meu coração àqueles que choram a sua ausência. O tempo, que por tempos se recusou tantas vezes a lhe dar o lugar de destaque que merecia, foi capaz de acordar com o perfume dos cravos para o respeito de que era merecedor e agora se incumbirá de lhe dar a memória devida. Não o esqueceremos nunca, nós brasileiros e eu muito especialmente, [lembro-o] sentado à frente das salas de conferência, atento, o rosto semi-voltado para ouvir melhor, a tomar notas (!!!) naquela letrinha pequena e, em seguida, a intervir com a qualidade luminosa do seu pensamento. O nosso Óscar, que também era nosso. Um grande beijinho de apoio e carinho.
Assina-o a Teresa Cristina Cerdeira da Silva, Professora Catedrática da Universidade Federal do Rio de Janeiro, mas muitos outros, portugueses e brasileiros, dos dois lados do Atlântico o assinariam. Assiná-lo-ia com certeza o seu ex-aluno João Fernandes que me telefonava pela manhã de Amesterdão a dizer o mesmo por outras palavras.
Evocar o Óscar passa por lembrá-lo na sua intimidade de homem de família: o atento cuidar do jardim, das camélias que sistemática e generosamente oferecia, rodeado de gatos, não muitos, os suficientes para lhe alimentar a convivência com o inefável que os gatos transportam, e as conversas sempre tocantes à volta de uma ou duas chávenas de chá inglês. Igualmente atenta, a presença oportuna e não menos estimulante da Maria Helena, igual na sensibilidade e no envolvimento com que ora participava nas conversas, ora o ajudava na logística do seu trabalho, nomeadamente na revisão de provas e bibliografias – a Maria Helena que soube conciliar uma reconhecida excelência profissional com o papel de esteio vinculante da família.
Homem de casa, o Óscar partilhava com os seus íntimos e amigos “assuntos de família” – a janela que não abre, a ponta de humidade no teto, questões a considerar em relação aos filhos, sempre presentes, do mesmo modo que partilhava reflexões e perplexidades a partir do seu imenso conhecimento do mundo. O Óscar também gostava – sempre que possível – de pantufas, de um bom camisolão e de uma manta sobre os joelhos.
Um dia, em 1992, Óscar Lopes escrevia a um António José Saraiva doente e desalentado: “Só o enfraquecimento da convicção é que nos pode dar a obsessão da morte. Lembra-te do verso de Pessoa, no poema Iniciação: «Neófito, a morte não existe». Cada um de nós é muito mais (e muitos mais) do que aquele que se vê. (...) «Neófito, a morte não existe», a não ser na falta de convicção de verdade ou de valor»”.
Assim foi Óscar Lopes, não acreditando na morte e perseguindo sentidos de verdade para a vida no pensamento. Deixo-lhe aqui, então, Óscar, neste dia de Primavera, uma camélia para si. O chá fica para um próximo encontro.

Isabel Pires de Lima

Nota: Texto lido na Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto, onde Óscar Lopes foi velado (23.03.2013)


  
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