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Jesuítas

A dúvida da origem do nome pode ser resolvida assim: o tal espanhol era basco, tal e qual Loyola, a quem devia pedir, em fervorosas orações, que lhe dirigisse a mão quando tinha de distribuir os ingredientes. Daí...

Todos sabemos como tudo começou: a Societas Iesu, S. J., a cujos membros se atribuiu a designação de Jesuítas, é uma ordem religiosa fundada em 1534 por um grupo de estudantes da Universidade de Paris capitaneados por Iñigo López de Loyola, um basco que passaria à história como Ignacio de Loyola.
A Companhia, que hoje em dia se dedica sobretudo a atividades de caráter educativo e missionário, foi aprovada pelo Vaticano através de uma bula papal, em 1540. Teve, como tantas outras ordens, religiosas ou não, momentos de grande fulgor, com figuras e atos de grande dimensão intelectual, moral e ética – homens como António Vieira, Manuel da Nóbrega, José de Anchieta, Francisco Xavier ou a defesa dos judeus durante a II Grande Guerra – e de grande vicissitude (alguns fanáticos, o papel desempenhado na Contra-Reforma, as relações equívocas com o poder), até chegar, em 2013, ao topo da hierarquia da Igreja Católica, com o Papa Francisco. Longe vão, portanto, os tempos em que o Superior Geral da Companhia era conhecido como Papa Negro.
Também todos sabemos da aversão que Sebastião José de Carvalho e Melo, Marquês de Pombal, votava aos Jesuítas, a quem acusou de todos os males que afetavam o reino e de serem sediciosos na metrópole e nas colónias. Seria provavelmente um exagero, como assinalou Voltaire, mas a verdade é que a Santa Sé acabaria por suprimir a Companhia de Jesus em 1773, cedendo à pressão de vários tronos europeus, nomeadamente o
espanhol.
Foi Catarina da Rússia, quem diria, que os acolheu e protegeu, talvez entusiasmada com um lema de Loyola que se adaptava perfeitamente à ideia de obediência e disciplina dos súbditos perante o modelo de exercício do poder, autocrático, que, como igualmente todos sabemos, aplicou profusamente: perinde ac cadaver (como um cadáver).

Dúvidas. Esta introdução não passa da pura exibição egocêntrica de uma falsa erudição, já que qualquer consulta a Mr. Google pode proporcionar muitos e mais interessantes dados jesuíticos. Mas serve efetivamente de excerto preparatório e propiciatório para os jesuítas de que quero falar. Estes, que para mim e mais alguns milhares (ou milhões) de apreciadores são os verdadeiros (porque vão diretamente para o céu... da boca, com uma velocidade e uma certeza inacreditáveis), têm na Senhora Dona Maria de Lurdes Modesto – luminosa especialista nessa arte da gastronomia que se considera agora, vão lá os Jesuítas saber porquê, uma indústria cultural – uma defensora intransigente (como também defende outras manifestações transcendentais, quem sabe se não mesmo divinais, da referida arte).
Pois bem, escreve MLM, em «Cozinha Tradicional Portuguesa» (Edições Verbo), com toda a sabedoria que se lhe reconhece: “Apesar de afamado em todo o País, é em Santo Tirso que o jesuíta continua a ser genuíno.” Desta afirmação, como verão daqui a pouco, tenho de dissentir. Mas prossegue MLM: “Foi neste concelho que primeiro se tornou conhecido, mas quase nada se sabe sobre a sua origem a não ser que a receita foi como que rapinada a um espanhol. (...) A introdução do jesuíta em Santo Tirso deverá ter acontecido por altura do virar do século, muito provavelmente durante a primeira década deste quando (...) acabou por vir para aqui um espanhol que começou a confeccionar os jesuítas. (...) E se quanto à proveniência da receita a ignorância permanece, quanto à justificação do nome do pastel também não se sabe muito. Aliás, como a muitas coisas acontece, as duas coisas andam associadas. Ainda assim, há sempre a tendência para cultivarmos uma hipótese explicativa que tenha alguma lógica: talvez o formato do bolo seja uma imitação do hábito dos jesuítas, ou se calhar a receita saiu de algum convento, não sei...”
Para mim, a dúvida da origem do nome pode ser resolvida assim: o tal espanhol era basco, tal e qual Loyola, a quem devia pedir, em fervorosas orações, que lhe dirigisse a mão quando tinha de distribuir os ingredientes, daí... Engenhoso, não acham?

Certezas. Passemos agora ao que interessa. Devoto como sou de jesuítas, decidi fazer uma prova distribuída geograficamente do Tejo para norte, que esses ‘religiosos’ triangulares de massa folhada (e mais uns regalos), ao contrário de outras coisas também boas, têm propensão para paragens que sejam frescas.
Antes de dar conta do meu gosto, devo desde já declarar que, em matéria de jesuítas (e de outras coisas que não vêm agora ao caso), sou fiel à regra, neste caso a definida por MLM. Mas não me oponho a que a tradição, que tem de ser forçosamente tida em conta, seja aprimorada com alguns toques de talento inovador. Disse de talento inovador e não de toscas alterações sem sentido, como às vezes acontece em desvarios de ambição profana.
Entrei, nesse périplo de investigação, em vários estabelecimentos (seletos) que exibem nos escaparates belos exemplares jesuíticos, a saber: pastelarias Garrett e Sacolinha (Cascais), Versailles e Bénard (Lisboa), Moura (Santo Tirso), Docelândia (Caminha) e Natário (Viana do Castelo, mesmo defronte de outro antro de perdição, o restaurante da Pensão Laranjeira).
Um amigo bostoniano, excelente académico e escritor policial, infelizmente já desaparecido, disse-me um dia uma verdade inquestionável: “Há cervejas melhores do que outras, mas ainda não bebi nenhuma que fosse má.” É precisamente assim que eu estou. Todos os jesuítas que pude comer – e em todos esses estabelecimentos, escolhidos apenas por razões idiossincráticas, provei-os várias vezes: de manhã, à tarde e à noite, a seco e com diferentes beberagens – me agradaram. Mas há um que sobressai, porque respeita a regra e sabe aconchegá-la com leves, quase etéreas, tonalidades distintivas – o da Natário, glorioso recanto vianense, onde o Senhor meu pai e o Senhor meu irmão mais velho começaram a levar-me quando ainda não sabia distinguir um jesuíta de um franciscano. Muito menos de um dominicano ou de um carmelita descalço.

Salvato Teles de Menezes


  
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