Notas muito pouco originais (ou mesmo nada) para uma reflexão sobre os processos da tradição oral no trabalho de campo de um caçador de canções.
Não suscita hoje qualquer dúvida a afirmação de que a oralidade é uma fonte de conhecimento do passado e do presente. No entanto, a utilidade e o valor da informação veiculada pela expressão oral nem sempre foi adequadamente reconhecida em termos de contributo não negligenciável para a compreensão do passado e do presente. Seria mesmo necessário esperar até meados do século XIX para se assistir ao aparecimento de um interesse efetivo pela tradição oral, sendo referenciados como pioneiros os escritos onde o inglês William Thoms (1) propunha o estudo dos usos e costumes, de saberes e fazeres, crenças e superstições, ritos e cerimoniais das mais remotas origens permanentes e sobreviventes no seio das classes populares. Acresce que este verdadeiro despertar do interesse pela tradição oral se registou no contexto influente do Romantismo, partindo mais da aquisição de uma, não raro, dramática “consciência de perda” do que propriamente da simples reeificação do passado. Modernamente, os antropólogos coincidem em considerar que a chamada cultura popular não passa de uma invenção dos românticos, num processo de construção identitária associado a um certo desencanto e desconfiança perante o progresso e a modernidade. De algum modo, os estudos dos românticos a partir da tradição oral refletiam uma tão generalizada como angustiada atração pelos chamados paraísos perdidos, constituindo a busca e a exaltação dos valores do passado um poderoso lenitivo para os males do presente e as perdas inevitáveis do futuro. E para exaltação de valores e de mundos perdidos, os românticos construíram os seus modelos de sociedade nos meios rurais. (2)
Terminologia romântica. Não se trata tanto de procurar avançar para o conhecimento científico do popular e da cultura através dos conhecimentos veiculados pela transmissão oral, mas, tão só, de construir (ou inventar) as chamadas “utopias intemporais”. As construções identitárias inventadas pelos românticos assentaram em premissas laboriosamente elaboradas: da constatação da agonia à proclamação da suprema necessidade de salvação dos valores da tradição, assumiram-se como verdadeiros guardiães da tradição, legitimando com a sua autoridade aquilo que declaravam ser autêntico, puro e genuíno. Ainda perduram muitos dos postulados que alicerçaram o pensamento e a ação dos românticos no que se refere às denominadas culturas-tradição (culturas populares de tradição oral) e, não raro, deparamo-nos com termos e conceitos que remetem para o pensamento do romantismo. Comentando apenas algumas dessas expressões – como “defesa”, “preservação” ou “salvação” –, diremos que ninguém salva o que quer que seja; uma tradição permanece enquanto cumpre uma função determinada, com um significado muito concreto, correspondendo a uma necessidade não satisfeita por outros meios. Até os textos da UNESCO sobre salvaguarda dos patrimónios imateriais preferem falar em “manutenção das condições de criatividade”, em vez de salvação. (3) Trata-se de uma terminologia do passado romântico que perdura pelos caminhos do folclorismo, onde pontificam profissionais de uma cultura inventada (e não do estudo da cultura, como seria desejável que acontecesse), instalados nos palcos de uma importante indústria cultural. (4)
Elemento identitário. Na atualidade, é amplamente reconhecido que o poder da palavra se encontra posto em causa pela cultura da imagem, com os mecanismos criativos da oralidade em progressiva perda de funcionalidade. No entanto, persiste a ideia de que permanecem válidos os conhecimentos associados a um passado identitário, com um aumento de consciência de que é preciso encontrar níveis de compatibilização entre o mundo da oralidade e o da tecnologia. É certo que a modernidade trouxe a fragmentação da vida, a atomização da experiência e a dessacralização dos valores. A própria mundialização da cultura, que muitos associaram a uma negativa globalização padronizada e padronizadora, geradora de perturbadora homogeneidade, acabou por gerar um poderoso efeito de glocalização que constituiu, ou está a constituir, uma tão poderosa como criativa resposta das culturas populares locais à globalização. A transmissão constitui a verdadeira pedra de toque da permanência da tradição. Quando Pouillon assenta a definição da tradição justamente nas dinâmicas da sua transmissão, trata-se de a reconhecer na sua essência expressiva e significante como algo vivo, ativo e partilhado. (5) Transmitida no presente pela via da oralidade ou pelas vias da escrita e da informação visual ou digital, permanece como elemento identitário integrante das culturas socializadas, atualmente submetidas a irreversíveis processos de mundialização que Warnier caracteriza pela fragmentação cultural da humanidade, associada às transformações determinadas pelas trocas comerciais e pelo desenvolvimento dos meios de transporte e de comunicação à escala planetária. (6)
Importância do folclore. São tempos de acentuada transformação os que vivemos hoje, como já o foram outros no passado, com distintas, mas não menos importantes, dinâmicas de mudança, de perda e de aquisição; sem dramatismos inoperantes ou cruzadas do que quer que seja, tendo presente que tudo quanto consideramos tradicional foi moderno, num momento ou tempo bem determinado, e não esquecendo que todo o património resulta da sobreposição dos tempos, num processo dinâmico, não estático. Tudo aquilo que parou no tempo desapareceu irremediavelmente. Apenas chegaram aos nossos dias, não tenhamos ilusões, as tradições ou elementos de tradições que não perderam funcionalidade e significado, incorporando a mudança. Ou não será certo, de facto, que quem não semeia o progresso faz morrer a tradição? Procurar registar o folclore (a sabedoria popular) que nos chegou para memória futura pela via da oralidade e, de um modo geral, tudo quanto se relaciona com as culturas-tradição, é tarefa que devemos assumir como fonte de aquisição de conhecimentos de grande importância para a compreensão do passado e do presente e, como afirma Luiz Díaz Viana, “como cientistas sociais, o folclore deve interessar-nos por ser um campo no qual se interinfluenciam o culto e o popular, o urbano e o rural, o oral e o escrito; por constituir, afinal, uma das tradições dentro das quais se transmite e transforma a cultura. Uma tradição que se conserva, se inventa e reinventa, como sucede na transmissão dos conhecimentos”.
Mário Correia
(1) Em 1848, na revista The Athenaeum, William Thoms propôs que se designasse por “folklore” o estudo da sabedoria popular para obtenção de conhecimentos sobre o povo. (2) Segundo o antropólogo Luís Díaz Viana, “o popular era, na perspetiva dos românticos, o rural – o povo camponês – e em muitas aldeias podia descobrir-se, ainda, segundo eles, o eco potente da Idade Média, do Cristianismo e dos primeiros latidos das nações” [«Tradición Oral», 1999]. (3) De um modo geral, esses conceitos foram rejeitados na transposição das orientações da UNESCO para a lei portuguesa: lei de bases da política e do regime de proteção e valorização do património cultural [Lei 107/2001] e regime jurídico de salvaguarda do património cultural imaterial [Decreto-Lei 139/2009]. (4) Expressão criada por Theodor Adorno e Max Horheimer, a designação indústria cultural surgiu em 1947 («Dialética do Esclarecimento»), com o intuito de especificar o caráter fetichista e manipulador do processo de produção e de veiculação da cultura. (5) Segundo Jean Pouillon, “a tradição é o que do passado persiste no presente, um presente onde é transmitida, onde permanece ativa e aceite por todos aqueles que a recebem e que, por sua vez, a fazem passar ao longo das gerações” [Tradition, em «Dictionnaire de l’ethnologie et de l’anthropologie», 1991]. (6) Jean-Pierre Warnier, «A Mundialização da Cultura», 2000.
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