O olhar do criador muta consoante as circunstâncias, conforme o que dele é exigido em defesa da sua “indústria”. E fixa-se em cada momento da sua consciência, ancorado na argumentação e cativo dos estímulos que o enobreçam ou dele façam “equívoco”.
Na forma, a obra será visível, mensurável, imaginável, será uma porção de memória, de consequências, de barro. A obra da humanidade é a realidade dos nossos dias, sujeita a todas e a mais algumas interpretações, mas fixada por datas, preenchida por fronteiras, adornada pela criatividade. A ciência se encarrega de nos preencher o quotidiano e de mitigar a curiosidade dos mais modernos. Ele há coisas em que vale mais a arte que o engenho, mas, quando de mão-dada, a ciência por vezes hiberna. Quando a obra se manifesta por exigência desse ente misterioso, a sensibilidade, e é fruto do conhecimento, fica circunscrita ao seu território da arte. O toque cirúrgico no aprimorar da obra é dado pela consciência do todo, das particularidades, das imperfeições e da sua efemeridade. O mundo, a realidade, é uma matrioska marota, é um labirinto, uma equação dos quais se retiram história e utopia. A obra é uma sementeira, uma colheita, um prato servido de mil saberes. Sem esta noção do lugar que nos coube, e há-de caber, a cada um de nós, torna-se difícil encontrar um outro sentido para a vida que não seja o da transformação da sociedade, da pessoa, por via da imaginação. Por aí, a sementeira e a colheita podem assumir a forma artística, não como essência – seria pedir demais – da condição humana, mas como contributo para a elevação do rosto que assumimos ao longo de milénios. Bastam esta noção da nossa pequenez, o credo na nossa maioridade, para aliviar das penas que nos prometeram à nascença. Viemos calados, surpresos, enormes de sonhos imperiais, a repousar numa letargia do bem que permite atrocidades e fratricídios. Sobram a obra e os reflexos da sua génese. O saber é um ínfimo reduto da diversidade de povos, das mitologias, dos arquétipos que povoam o imaginário. Há fome à face da terra, há um maná ignorado onde mordiscam a aventura do progresso e a recriação do artista, há espaços de política e de reflexão. A obra é testemunho, consciência do legado e olhar aberto sobre o futuro.
Não há obra acabada. As maiores realizações da civilização merecem olhares comuns, louvor e um perverso desinteresse pela entropia social. Ou ignorância do seu alcance histórico. A humanidade não pode querer aquilo que lhe está proibido, o quanto a inquieta por chamar-se de felicidade, não pode, mas quere-o desde o mais íntimo da sua fragilidade. A mística, esse ente alvo do preconceito, a oração, esse momento de liberdade, o sapiens, convivem e hostilizam-se, amam-se entre eles, sem regras, na ribalta donde emanam os actos da mais estúpida barbárie. A consciência da obra obriga a um olhar que lhe seja exterior, que não esteja alojado nela e que perscrute para além. O olhar do criador muta consoante as circunstâncias, conforme o que dele é exigido em defesa da sua indústria. E fixa-se em cada momento da sua consciência, ancorado na argumentação e cativo dos estímulos que o enobreçam ou dele façam equívoco. Não há obra acabada, sempre destino de interpretação, volátil na perpetuação dos valores que a determinam. Assim se compreendem tanto os exageros – fora do seu tempo – das artes, como aqueles que a cidadania coloca à mercê dos homens. Serão parentes próximos, como a invenção das leis é familiar da doutrina, irreconhecíveis entre si quando se confrontam. A obra é consoante a subversão das leis, à margem da doutrina, para que se perpetue, nem que seja no nosso imaginário. Essa consciência é importante.
Luís Vendeirinho
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