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Arte poética: In Memoriam

Morreu Herberto Helder, poeta maior da língua portuguesa. Apesar da sua reserva em todas as matérias (recusava prémios, detestava elogios, sobretudo falsos ou equivocados, falava pouco de si), sucederam-se os panegíricos – não poucos completamente fora de contexto e justificação. Chegou a haver quem contasse historietas sobre o seu apartamento de Cascais, quem lhe tivesse encontrado influências abstrusas, quem se tivesse esquecido de referir os colegas que verdadeiramente apreciava e reconhecia como seus pares, quem, enfim, se servisse dele, já que, quando se está morto, não se pode recalcitrar.
Quando privei com ele, tomando café praticamente todas as tardes, vinha de Cascais todos os dias, de comboio, e discorríamos, com muitos outros – Nuno Júdice e mulher, Gastão Cruz, João César Monteiro, Margarida Gil, José Carlos Vasconcelos e mulher, Augusto Abelaira, às vezes José Gomes Ferreira e José Cardoso Pires, etc. – sob a asa protetora de Carlos de Oliveira (e da Maria Ângela). Eram tardes de amena cavaqueira, falava-se de tudo, incluindo futebol, mas as opiniões sobre literatura e cinema prevaleciam.
Recordo-me bem de quando falei com Carlos de Oliveira sobre Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola, e não me expliquei convenientemente. O poeta e romancista não tinha visto o filme e, ao referir-lhe a utilização de Wagner (Cavalgada das Valquírias) como uma notável trouvaille, ele disse-me que isso já fora feito inúmeras vezes. Só quando lhe disse que eram os helicópteros, verdadeiros tanques voadores, que atacavam atroando os ares com a música wagneriana que saía dos altifalantes que carregavam ao lado das bombas, é que concordámos que se tratava de uma solução dramatúrgica de rara inteligência para expressar a dimensão demencial da guerra e daquele oficial norte-americano que obrigava os seus soldados a fazerem surf sob fogo dos patriotas vietnamitas.

Ínvios caminhos. Esta morte veio trazer-me à lembrança o meu primeiro contacto com outro poeta. Era Pedro Homem de Mello, ainda vagamente aparentado com meu pai, e visitava a minha terra essencialmente para convidar o Nelson Vilarinho, exímio tocador de concertina, a participar nos programas televisivos de folclore que organizava. Afinal, eram dois poetas: o primeiro, ‘o maior dos poetas menores’; o segundo, o maior dos cantadores ao desafio, uma forma de poesia menor.
Ouvir Teresa Tarouca cantar Pedro Homem de Mello, em especial “Povo Que Lavas no Rio” na sua versão completa, permite ver que tipo de poesia era a dele, perceber as opções prosódicas que tomava e por que as tomava. Do Nelson Vilarinho, só quem o ouviu em contenda com outros cantadores, sob os carvalhos da mata de Brasil, é que pode compreender a riqueza da sua imaginação e dos artifícios, sobretudo lexicais, que usava com total desfaçatez. Os caminhos da poesia são, como os de Deus, ínvios.
Como atrás assinalei, de certa maneira, também são ínvios os caminhos de alguma crítica, que esvoaça como moscas sobre os mais desprevenidos ou os que, por esta ou aquela razão, já não têm voz. Citar, por exemplo, Não sou moderno, eu (frase conhecida de Herberto Helder) sem referir a dimensão borgeana dessa afirmação, sem estabelecer o conceito de anacronismo como um dos grandes procedimentos estilísticos do nosso tempo em termos de arte literária, ou outra qualquer, é para mim motivo de riso. Assim como falar dos seus últimos livros sem determinar a presença subjacente da voz de Carlos de Oliveira em vários poemas, é revelar desatenção da comunicação/contaminação que sempre existiu entre os dois mais importantes portugueses poetas do nosso tempo. Ou falar da vertente mais críptica da sua poesia (a famosa obscuridade), sem dar nota da aversão que sentia por Freud e da proximidade que tinha de Jung, é escamotear um dado pertinente para a exegese da obra de Herberto Helder.

De um e de outro. Herberto Helder: “Um dia destes tenho o dia inteiro para morrer,/ espero que me não doa,/ um dias destes em todas as partes do corpo,/ onde por enquanto ninguém sabe de que maneira,/ um dia inteiro para morrer completamente,/ quando a fruta com seus muitos vagares amadura,/ o dom – que é um toque fundo na ferida da inteligência:/ oh, será que um poema entre todos pode ser absoluto?/ escrevê-lo, e ele ser a nossa morte na perfeição de poucas linhas.”
Carlos de Oliveira: “A cada hora/ o frio/ que o sangue leva ao coração/ nos gela como o rio/ do tempo aos derradeiros glaciares/ quando a espuma dos mares/ se transformar em pedra.// Ah no deserto/ do próprio céu gelado/ pudesses tu suster ao menos na descida/ uma estrela qualquer/ e ao seu calor fundir a neve que bastasse/ à lágrima pedida/ pela nossa morte.”
Intensos, não é verdade?

Salvato Teles de Menezes


  
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