“Se é pecado um povo deixar-se enclausurar durante quarenta anos, será pecado maior permitir que os seus filhos sejam enclausurados, sobretudo quando julga ter-se enfim libertado”.
O telefone chamou há minutos. Uma máquina com voz de senhora alertou-me para pagar uma factura sem demora. Corri a abastecer-me de umas quantas velas, ou não fosse o petróleo suficiente para manter a casa iluminada. Dantes, havia cabines em cada esquina, havia uns tostões que davam para sabão azul-e-branco e, aqui em casa, nunca fomos perseguidos por conta da nossa falta de solidariedade para com o Estado. Agora, cada mês, vem sempre imposta uma contribuição extraordinária que me impede de dar esmola à saída da mercearia, implorada por um sem-abrigo qualquer que nunca ouviu falar dos fundos monetários, nem tão pouco do arredondar das contas nos centros comerciais. Tento habituar-me à ideia de que esta camisola que visto é fruto da escravatura do nosso século, sem salário, lá longe onde não há papel nas escolas e há água salobra para beber. Lá onde se fazem parafusos e chips para os carros-de-assalto empregues nas guerras, onde se inventam as geringonças usadas para difundir cimeiras de paz e óculos para saber a cor das cuecas dos cidadãos não-alinhados.
O telefone tocou e eu paguei. Outrora as pessoas recebiam cartas a transbordar beijos de saudade, vindas por correio aéreo, eram mandadas para a cama, ao som do hino nacional, para suarem os desejos mais íntimos, liam autores sem rosto nas tardes mornas das férias. Hoje mandam “likes” nas páginas dos cosméticos, afundam os narizes nos écrãs enquanto ficam a saber se um cão foi atropelado em Sidney ou se o Primeiro deu um traque em Bruxelas, ou mesmo se há consenso no que respeita ao “inconseguimento” da humana inteligência. Enfim, pobreza de uns que dormem à luz das soleiras e de outros que têm opinião sobre tudo, como sejam a interpretação da palavra “dignidade” e a razão de termos perdido o Império na cimeira onde a Guiné Equatorial nos deu um pontapé no fundo das costas. Logo isto esquecemos, que o “mestre da bola” foi a Belém, não para comer bolo em memória do Menino, mas para dizer que o mundo é redondo, tão redondo que nos esquecemos de Pedro Nunes, de Gago Coutinho e de Fernão de Magalhães. Afinal, no Bundestag fomos reconhecidos como expoente dessa coisa chamada preguiça e tivemos o privilégio da correcção do Calendário Gregoriano, tão urgente quanto os branqueamentos do 5 de Outubro e do Primeiro de Dezembro. O resto são as varas criminais que mandaram queimar provas de trapaças de biliões para haver espaço onde guardarem os cheques sem provisão de pais de família tesos, tesos e pacificamente indignados.
E o telefone toca todos os meses. Um dia destes foi para me dizerem, uma máquina com voz de senhora, que tinha esquecido a factura de um monopólio, eu fui lesto a ver se ainda tinha televisão e lá estava a concorrência, do monopólio diga-se, a prometer ouro, ouro verdadeiro, por conta da factura em falta. É batota, batota, batota, batota e ignorância, daquela que leva a velhota do terceiro-direito a pagar as contas a horas e a esperar pelas consultas, meses a fio, no hospital onde o ministro da saúde nunca foi, talvez por guardar as economias, e o seu precioso tempo, para a manicura do bairro. Assim fica bem-visto e a reputação incólume. E aqui vamos usando sabão azul-e-branco, para a memória, para os pecados e para lavar “papel” em offshore, que a plebe compra férias a crédito como os eleitos compram votos pelo crédito das promessas, e do “inconseguimento”, diga-se. O despertador tocou e hoje há polvo para a ceia, vamos digeri-lo com o melhor da nossa dentição, que o polvo já tomou nos seus braços as letras, os livros e a inteligência dos não-alinhados, e vamos fazê-lo regurgitar na panela os elogios que nos roubou. Pode até acontecer – milagre – que, entre a banha-da-cobra e o boletim meteorológico, se descuidem a liberdade ou a verdade, e venham à luz da ribalta meia dúzia de humanas justiças a dar cor aos olhos dos cegos. Todo-poderosos, os monopólios não cedem à hipocondria que os leva a fazer a sua colonoscopia, tão dolorosa, tão pacificadora da perpetuação do seu poder. Ouvi dizer que, se quando o telefone tocar nós ousarmos não comprar velas, nem petróleo, pode acontecer que a máquina com voz de senhora se engasgue e nos tome por inventores da pólvora, e tenha receio que a nossa indignação possa acender um qualquer rastilho.
Quando o telefone tocou, estava a vizinha a contar, enquanto punha no estendal a roupa lavada, que se fala de construir um muro aqui no bairro. De um lado vão habitar doutores e do outro não-doutores, para que assim não haja contaminação de saberes. Será que a peste se instalou a leste, ou a oeste? Estou em crer que em ambos a caridade vai continuar a ter o seu papel, ou então os monopólios vão dar cabo dela, como deram conta do sabão azul-e-branco e como tentam dominar no reino dos despertadores. Da próxima já o saberei, se a máquina com voz de senhora, quando insistir em falar comigo, deixar transparecer algum sentimento ou comoção.
Luís Vendeirinho
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