“Não gostei que a Madalena me magoasse o braço sem pedir desculpas. Ana”. Sara, 9 anos e naquele dia presidente da reunião semanal do Conselho de Cooperação Educativa da turma de 3º ano, constata que o assunto foi colocado por alguém da turma vizinha. Levanta-se e vai procurar a Ana. No tempo de espera penso no que acabo de ouvir: os dois pontos anteriores da agenda tinham sido colocados pela Madalena e pela Sara. Os assuntos foram conversados ordenadamente pelo grupo de crianças de 8 e 9 anos, acompanhadas pela sua professora. Sara inscrevia quem punha o dedo no ar, dava a palavra, riscava os nomes à medida que as pessoas iam falando, não deixando de participar.
A Madalena tinha escrito “Não quero que o André me chame lata!” Explicou que, durante um jogo no qual ela não concordou ter ficado em último lugar, o André a chamara de ‘lata’. André explicou que disse “Tens cá uma lata!” A professora perguntou que significado tinha a expressão, para o André. “É ser um bocado egoísta.” A Madalena não tinha percebido assim... A professora sugere uma lista de expressões usadas pelas pessoas do grupo e o que cada um entende por elas. O assunto da Sara reportava a um episódio do início da semana. Miguel e ela estavam a fazer um trabalho a pares. Quando ela lhe pediu para colocar um título conveniente no texto que tinham acabado de escrever, o André interferiu, sugerindo o título. Sara não gostou, porque o trabalho a pares era com o Miguel, não com o André; sentiu-se ofendida, uma vez que era ela o par do Miguel, e não o André. Este responde que fora o próprio Miguel que lhe tinha pedido ajuda. Miguel confirma. Sara considerava ser bem capaz de ajudar, se o Miguel tinha dificuldade em encontrar o título... Quando, depois de dez minutos de interações dialogadas, a professora pergunta o que escrever em ata, a Sara formulou, apoiada pela Madalena: “Quando estamos a trabalhar a pares, um membro do par pode pedir apoio a outro elemento da turma, desde que o outro membro do par concorde”. Sara considerou o assunto resolvido. Todos concordaram.
Entretanto, a presidente voltou com a Ana, de 10 anos. Esta pede que lhe lembrem o assunto. E depois conta: “Sim, mas tenho que dizer algo antes. Quando temos aulas de Inglês juntos, não gosto da maneira como a Madalena olha para mim. Penso que já lhe disse isso uma vez. E ela continua a fazer essa cara estranha para mim. E agora, no outro dia, fez-me uma nódoa negra no braço e nem pediu desculpas.” A Madalena reage: o diário não fala de caras. Ela estava a querer recuperar o balão que a Vitória lhe tinha tirado e segurava com força. Ao libertar o balão, desequilibrou-se e deu um encontrão à Ana. Portanto, quem deveria pedir desculpas era a Vitória... A discussão que se gera divide o grupo: uns têm a opinião que se deveria chamar a Vitória, outros consideram que a Madalena deveria ter logo pedido desculpas, enquanto a Ana insiste nas ‘caras estranhas’ que a Madalena lhe faz. No decorrer da conversa, a Madalena diz: “Pronto, peço-te desculpas por te ter magoado, mas só por isso, não por fazer caras; isso não tem nada a ver.” A Ana insiste que tem tudo a ver e que parecia que havia algum gozo no olhar da Madalena. O Miguel explica que não, que é mesmo uma forma própria da Madalena olhar e que na turma já estão habituados. A Madalena diz que não sabe que faz caras. A professora sugere que poderá ser um olhar de quem está a pensar, parecendo fixar outra pessoa sem o saber. Propõe dialogar logo que algo lhes pareça estranho. A Ana, inscrita para falar, diz: “Agora que ouvi a professora, penso que já estava chateada com a Madalena. Podia ter perguntado porque estava a olhar assim para mim, e então podia dizer-lhe que me tinha magoado, em vez de escrever no diário, e talvez tivéssemos resolvido entre nós.” A professora respondeu que era possível que sim, mas que, de qualquer forma, o diário estava sempre disponível para todos.
Estas crianças – que se exprimem todas em Português – encontraram no Conselho de Cooperação Educativa o espaço do diálogo necessário. Necessário, porque descobriram que falar a mesma língua, só, não é suficiente para se entenderem. A explicitação em coletivo da interpretação que cada pessoa faz dos sinais que outra emite é importante. Não me é difícil pensar que esta turma, naquela tarde, contribuiu para o pluralismo de que a sociedade de todos os homens e de todas mulheres tanto carece.
Pascal Paulus
Nota Conselho de Cooperação Educativa é aqui entendido como módulo estruturante da sintaxe da proposta de trabalho do Movimento da Escola Moderna.
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