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O Estado e a ortografia

1. Uma ortografia é uma norma concebida para uniformizar o uso escrito de um idioma. É, portanto, algo bem diferente do que sugere o termo ortografia (“grafia correta”). Onde está “correta”, deve entender-se convencional. A norma ortográfica pressupõe o uso falado – e amiúde, como no caso português, o uso escrito – do idioma em causa, e não o inverso. O uso falado do idioma português, no que respeita à pronunciação e à prosódia, é muito variável. Basta percorrer as diferentes regiões de Portugal e as ilhas atlânticas para nos darmos conta disso. Se mudarmos de continente, essa variabilidade confirma-se e reforça-se. Por exemplo, o Português falado em Portugal e falado no Brasil são bem diferentes. Acresce que não havia em Portugal, até 1911, uma ortografia oficial, patrocinada e imposta pelo Estado. O que havia era um conjunto de grafias mais ou menos regulares. E o mesmo acontecia no Brasil até 1931.

2. Conceber uma ortografia alfabética comum para um idioma pluricontinental - como é o Inglês, Castelhano, Português e Francês – não é, por isso, tarefa fácil. Uma das vias que não pode ser trilhada, visto ser contraditória com esse objetivo, é a de uma ortografia fonética. A via de uma ortografia de base estritamente fonológica é a opção mais lógica, mas só está disponível para uma língua de uso exclusivamente falado (uma língua ágrafa), até ao momento em que os seus usuários resolvem, com a ajuda de linguistas, dotá-la de uma ortografia. No caso das línguas citadas, todas com uma longa tradição escrita consuetudinária, é necessário acomodar outros critérios, acolhidos pelas representações gráficas recebidas do passado, que os seus usuários não consentem ver trocadas por representações gráficas diferentes daquelas que a tradição consagrou. Assim sendo, uma “ortografia” irregular e caprichosa como era a do Português até à primeira década do século 20, não se reforma, fixa-se. “Quer dizer, quando o legislador de 1911, apoiado na proposta da comissão, determinou que se escrevesse çapato e não sapato, enunciando a regra de que o C com cedilha nunca se usasse em inicial de palavra (porquê?), nada mais fez do que fixar, como única correta, uma de duas alternativas que antes se ofereciam facultativamente à escolha de quem escrevesse.” (J. G. Herculano de Carvalho, “Ortografia e as ortografias do português”. Confluência no 13, 1997).

3. Mas o ponto principal é outro: A) a quem cabe o papel de “fixar” a ortografia? B) que caráter deve ter essa fixação? Para os políticos da chamada 1ª República, as respostas a estas duas perguntas eram inequívocas: A) ao Estado, B) coercivo. Para a ditadura do Estado Novo, as respostas eram as mesmas. O que não surpreende. Apesar das diferenças que separavam os governantes desses dois regimes, havia um traço comum a uni-los. Julgavam-se em tudo superiores à grande massa analfabeta do povo que se propunham benevolentemente alfabetizar, a conta-gotas. As respostas dos políticos da República saída da revolução de 25 de Abril de 1974, continuam a ser as mesmas. O chamado Acordo Ortográfico (AO) de 1990 foi votado favoravelmente por todos os partidos com representação parlamentar, apesar de todos os pareceres negativos que recebeu. Dele resultou um desacordo maior do que existia antes da sua aprovação. Mais importante do que isso: nenhum desses partidos contestou que essa norma tivesse um caráter coercivo. E isto já se deve estranhar e repudiar, se queremos viver em democracia.

4. Se excluirmos a língua portuguesa, verificamos que a fixação da ortografia das línguas da Europa que são hoje usadas por falantes e povos de várias nações foi feita de modo não coercivo, por um consenso tácito, mesmo quando não havia sequer algo de vagamente semelhante a uma democracia. No caso do Francês e do Castelhano, esse consenso tácito foi fundado na imitação dos “bons escritores”, reforçado pelos dicionários elaborados pela Academia Francesa e a Real Academia Espanhola. No caso do Inglês, do Alemão e do Russo, onde não existiam academias com funções análogas, esse consenso resultou exclusivamente do prestígio dos grandes escritores, filólogos e linguistas, reforçado pelos dicionários de homens como Samuel Johnson, na Grã-Bretanha (A Dictionary of the English Language, 1755) e Noah Webster, nos EUA (A Compendious Dictionary of the English Language,1806; American Dictionary of the English Language, 1828, 1844).

5. No caso português, em que o autoritarismo estatal continua a vingar, o resultado é a contínua querela ortográfica e os seus perniciosos efeitos concretos, como os que constam desta notícia: O conselho directivo do Instituto de Avaliação Educativa (IAVE) criticou nesta quinta-feira notícias e artigos de opinião sobre eventuais consequências da aplicação do Acordo Ortográfico de 1990 nas notas finais dos exames do 9º e do 12º anos, “pelo alarme social e instabilidade que poderão provocar nos alunos e nas suas famílias”. Segundo escreve, “nos critérios específicos de avaliação da prova de exame estão previstos descontos (...) por aplicação de factores de desvalorização no domínio da correcção linguística até um máximo de 40 pontos”, ou seja, quatro valores em 20. “Dependendo da natureza de cada erro (ortografia, sintaxe, morfologia, impropriedade lexical), os descontos a aplicar podem corresponder a uma desvalorização de um ou dois pontos por erro (em 200 pontos).” Isto significa que um aluno que dê 20 ou 40 erros ortográficos diferentes no exame poderá ser penalizado até 40 pontos (em 200), ou seja, em quatro valores (num total de 20). [Público, 12.03.2015]

José Catarino Soares


  
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