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No meu tempo

1. Abrir os novos manuais escolares de Português para o 10º ano faz emergir a memória com que, há uns 50 anos, se abriam, no então 3º Ciclo dos Liceus, os «Textos Portugueses Medievais» (Corrêa de Oliveira e Saavedra Machado), em cuja nota preliminar se lia: “As observações a este programa assinalam para o estudo desta disciplina, entre outros objectivos o de ‘promover a ilustração do espírito e também a educação cívica dos alunos, por meio da exposição metódica da história da literatura portuguesa à luz de numerosos documentos que permitam acompanhar a evolução dos sentimentos, das ideias e da arte, bem como da linguagem, numa síntese da vida mental da Nação’.” Seria esta a página que Mr. Keating mandaria retirar no Clube dos Poetas Mortos?
Não vou comentar manuais escolares de Português. São sempre iguais e já os estudei sobejamente. Este ano chegaram-me à mão dois da ASA, da Areal e da Porto Editora e um da Raiz Editora, da Santillana, da Texto Editora, da Plátano Editora e da Didática Editora. Para já, 11 manuais! Se olharmos para um deles, com 340 páginas, mais 270 do dossiê do professor, 144 do caderno de atividades, 48 do livrinho de leituras suplementares e ainda umas 12 de mapas de planificações e quejandas, temos um total, se a calculadora do PC não se engana, de 814 páginas. Multiplicadas por 11, são 8.954 páginas para serem analisadas! Sem incluir CDroms, vídeos e outros. Ou seja, há aqui qualquer coisa que não bate bem...
Pior: as novas Metas Curriculares do Ensino Básico foram homologadas com o Despacho no 10.874/2012, de 10 de Agosto, para serem aplicadas à viva força, quando tínhamos um documento intitulado Competências Essenciais do Ensino Básico, que respeitava a evolução de cada aluno e permitia a inclusão, a diferenciação pedagógica, a inovação de estratégias, a interdisciplinaridade e a integração de saberes. Agora, mesmo sem se ter um novo programa, nos últimos três anos, as metas apontaram para: a fluência da leitura, a oralidade, o uso adequado da gramática, a composição escrita e o contacto com a melhor literatura portuguesa – que há de ser toda a que for boa e adaptada aos respetivos grupos etários; e tudo isto, como se vê, não traz nada de novo.
Traz metas, voltamos aos objetivos para estarmos sempre a definir coisas que os meninos têm de saber em timings muito apertados, sem lhes dar a oportunidade de evoluírem de acordo com os seus ritmos próprios, sem os podermos apoiar de acordo com a necessária equidade que a escola pública – que parece ser para aniquilar – deve proporcionar.

2. E chegou o novo programa para o Básico, homologado recentemente para entrar em vigor em 2015/2016, concebido pelo mesmo subgrupo de trabalho que elaborou as famosas metas, para que com elas se harmonizasse. Sem deixar – diz o legislador – de respeitar a autonomia pedagógica dos professores, dos autores de manuais (nunca tal eu lera!) e das escolas.
Mas pergunto: um aluno de 7º ano, com 12 anos, entende a profundidade dos poemas de António Ramos Rosa ou de David Mourão-Ferreira ali apresentados? Cantigas medievais, Sá de Miranda, Shakespeare para alunos do 8º ano, não poderão ser riscos demasiado grandes se não tiverem abordagens excelentes e interdisciplinares que a carga horária não permite? Jorge de Sena, Ruy Belo, Helberto Helder, serão mesmo os melhores poetas para o 9º ano? E a meditação do duque de Gandia sobre a morte de Isabel de Portugal um dos melhores poemas, tendo Sophia tanta produção maravilhosa? A Carta a el-rei D. Manuel sobre o achamento do Brasil?!
E porque gosto da circularidade dos textos, cá regresso ao 10º ano. Vivemos um Abril intenso de mais de 40 anos em busca da alfabetização do nosso povo. Da leitura para além das linhas escritas. Da busca da verdade nas notícias e da procura da justiça. Queremos as oficinas de escrita nas aulas de Português, os textos dos media, os funcionais, os do quotidiano. Queremos organizar a oralidade. E qual é a tónica principal no novo programa? Poesia trovadoresca, cantigas de amigo, cantigas de amor; Fernão Lopes, Crónica de D. João I, Gil Vicente, Farsa de Inês Pereira, Auto da Feira; Luís de Camões: lírica e épica (“Os Lusíadas”); História Trágico-Marítima.
Temas importantes. Como o são as línguas e as culturas clássicas. Mas... E o resto? E o tempo para dar tudo isto? Não, senhores autores; não, senhores do ministério, não estamos no melhor colégio de Lisboa. É preciso conhecer o país profundo. Não defendo que se baixe o padrão, mas é bom que se tenha a noção da realidade. A expressão No meu tempo... devia ser proibida em Portugal. E muito mais em Educação. Que o meu tempo foi só de meia dúzia e nada será o que foi.

Rafael Tormenta


  
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