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Ressuscitar o morto

Cem figuras públicas juntaram-se para interpor no Supremo Tribunal Administrativo uma ação dita popular contra a aplicação do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90) nos ensinos Básico e Secundário. Para mim, que já fui professor do 1º Ciclo e do Superior e sou professor de Português do 3º Ciclo e do Secundário (e também de Latim, Oficina de Teatro e Área de Expressões) e investigador, o caso já estava bem inumado.

Já há alguns anos que o AO90 começou a ser paulatinamente introduzido nos ensinos Básico e Secundário, finalizando-se a implementação em 2012/2013. Obedecer às imposições ministeriais foi sem dúvida a opção de milhares de docentes, concordassem ou não; “na hora da morte não vale a pena tomar remédio” ou “quando o mal é de morte, o remédio é morrer”. Foi o que se fez à polémica: sepultou-se, ignorou-se, resolveu-se; tanto mais que a própria classe se encontrava dividida entre o sim e o não. “Bom serás, se morto estás”.
De entre os docentes, quem mais “padeceu” foram sem dúvida os de Português, especialistas que tiveram que esquecer o que sabiam muito bem e reaprender, pois qualquer deslize seria “a morte do artista”. E embora se diga que “antes morte que má sorte”, os professores são uma classe de trabalhadores bastante digna, cumpridora e com discernimento suficiente para optar por aquilo que é mais profícuo para os seus alunos – ao contrário do que costuma dar a entender Miguel Sousa Tavares, que só por ter ali o seu nome, tira toda a credibilidade ao documento. “Aos mortos e aos ausentes não os insultes nem os atormentes”; mas não se trata de um ultraje, somente do ponto de vista de um qualquer professor.
Venham as polémicas que vierem – o assunto foi desenterrado, pois “só uma porta a vida tem, enquanto a morte tem cem” –, de uma coisa tenho a certeza: em Portugal e onde houver emigrantes, no Brasil, nos PALOP, em Timor, Goa, Macau ou Malaca, os povos que se exprimem em Português (terceira língua da Europa mais falada, e sexta a nível mundial) ou num qualquer seu crioulo, vão continuar a fazê-lo, mal ou bem, dependendo do ponto de vista. Mas hão de falar sem papas na língua, tenham a língua comprida ou não, com uma expressão de origem portuguesa a saltar-lhes de raiva na língua ao pé do coração. Porque “o amor é mais forte do que a morte” e uma língua não morre se não nos deixarmos subjugar a impérios que colonizam culturalmente os jovens a cada momento.
A língua falada é uma coisa e o acordo sobre a escrita é outra; a escrita por si só é absolutamente convencional. A maior parte das pessoas que tenho visto argumentar contra o AO90 fala – sem explicação que me pareça lógica – na Língua Portuguesa, entidade viva que penso ser conveniente alimentar bem: ensinar os jovens a amá-la, a brincar com ela, a recriá-la, a fazer dela um instrumento de criatividade e de vida. Não com francófonos e anglófonos, mas sobretudo com falantes e escritores de expressão portuguesa.

Mais ‘c’, menos ‘p’. Tenho defendido este acordo ortográfico porque acredito ser necessário evoluir. Confio profundamente na facilidade de escrita que o desaparecimento das ‘mudas’ nas sequências consonânticas traz, sobretudo para as crianças e jovens portugueses que hoje vão à Escola – felizmente todos! Os que não têm um só livro em casa porque são filhos de analfabetos, os que são vítimas de violência doméstica, os que passam mesmo fome, os que são violentados com programas como a Casa dos Segredos, cuja qualidade e dignidade ninguém fiscaliza (controlo de qualidade é diferente de censura).
Também a simplificação na acentuação veio facilitar aprendizagens, embora passe a haver menos traços de distinção, ou de identificação, e isso confunda quem aprendeu de outra maneira. Passei muitas mudanças ortográficas, nenhuma tão forte como esta; lembro-me de ver escrito Philosophia e não consta que a mudança ortográfica tenha sido a causa da morte do meu avô; há consoantes que pronuncio e que os meus filhos já ‘abateram’ (“a morte não escolhe idades”), mas comunicamos perfeitamente. Não concordo que Primavera ou Dezembro deixem de ser nomes próprios e passem a ser grafados com minúsculas, nem entendo as razões.
Não me preocupo com a nossa ‘irmandade’ latina. Vamos continuar a aprender as línguas de Espanha com facilidade (basco à parte), assim como o Italiano, o Francês ou até, se possível, o Romeno; nunca vi estes nossos vizinhos etimológicos preocupados connosco – veja-se os franceses, que, se pudessem, até faziam os congressos científicos todos na sua língua, nem que se estivesse na Grã-Bretanha.
Inquieto-me pela Língua Portuguesa. Que possa singrar pelo Mundo, nas escritas de Sophia de Mello Breyner, Mia Couto, Valter Hugo Mãe, Eduardo Agualusa, Gonçalo M. Tavares, Germano Almeida, Miguel Torga, Fernando Sylvan, Nuno Júdice, Orlando da Costa, José Saramago, Alda do Espírito Santo, António Ramos Rosa, Eugénio de Andrade e tantos outros, para ficar pelos últimos tempos e só por alguns, propositadamente misturados na mesma língua, deixando de fora muitos dos melhores. Com mais ‘c’ ou menos ‘p’, a poesia será sempre a mesma. E a força da língua – e de quem a tem e vai a Roma e ao Mundo inteiro – está nessa capacidade de bater com ela nos dentes e depois fazer dela mel. Que “a água lava tudo menos as más línguas”.

Não compreendo. Por que razão vêm 100 figuras públicas (entre as quais algumas pessoas da minha melhor estima), ao fim destes anos todos, em que milhares e milhares de jovens aprenderam a escrever em função do estabelecido no AO90, e em que tantos professores tiveram que fazer um esforço inconcebível – tenho de dizê-lo, porque “a língua nunca mente o que o coração sente” –, querer ressuscitar o morto?
É certo que o governo que temos “é bom para ir buscar a morte”. E que eu nunca fui contra quem luta pelos seus ideais, porque sei que dizer “quem se satisfaz com a sorte, será feliz até à morte” pode ser uma forma de nos levar à certa. Mas não se pode brincar com a vida dos estudantes – milhares de cidadãos do futuro, que não têm sido senão estropiados pelos senhores do Rossio – nem com a existência dos profissionais de educação. Atribuam-se as culpas a quem se quiser. “A morte, até matar, mata.”
Desde que não haja problemas de entendimento, não vejo inconveniente em que as pessoas mais velhas e as mais teimosas – ou briosas, mas cuidado que “os tolos e os teimosos enriquecem os advogados” – continuem a escrever batismo com ‘p’. Por isso não se hão de fechar as portas do Céu a ninguém.
“Tal vida, tal morte” e “ nenhum dia é mau se a morte vem a horas”. Se houver dúvidas, há sempre formas e outras linguagens que permitem esclarecer os trâmites de um ato de comunicação. Que fazemos nós perante um documento redigido por um especialista em Direito? Limitamo-nos a traduzi-lo, como se estivesse escrito noutra língua!
O importante é que estas coisas sejam ‘naturais’ e ‘entrem’ com calma. Convivemos bem com a diferença durante toda a vida – como se sabe se a primeira palavra da frase é presente ou passado? Pela grafia, ninguém. Só pelo sentido. Nunca houve acentuação que marcasse a diferença, como nos verbos da primeira conjugação, e nunca ninguém faleceu por causa disso. E se faltasse, “a morte com honra não desonra”. “Língua ajuizada é sempre moderada”.
“Vamos à vida, que a morte é certa”?

José Rafael Tormenta

[Texto construído com a ajuda do Dicionário de Provérbios, Adágios, Ditados, Máximas, Aforismos e Frases Feitas; compilação de Maria Alice Ribeiro dos Santos; Porto Editora]


  
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