Documento notável, pela opulência histórico-bibliográfica e ineditismo biográfico, «Ilse Losa: Vida e Obra Sob Céus Estranhos» foi editado em 2013.
«Ilse Losa: Vida e Obra Sob Céus Estranhos» não é exclusivamente uma biografia da escritora judia que em 1934 se refugiou no Porto, onde viria a falecer em 2006, aos 92 anos, depois de ter constituído família e adquirido a nacionalidade portuguesa. O ensaísta desdobra-se em biógrafo, bibliógrafo, crítico literário, historiador, beneficiando do facto de ter convivido com Ilse Losa e dela ter recebido confidências, impressões, textos intimistas, partindo de toda essa gama de registos pessoais para um vasto rastreio do que foi a vida sociopolítica em Portugal e no mundo no período coincidente com o da vivência portuguesa de tão rica e intrigante “personagem” da nossa literatura. Dessa ambição de amplitude resultou um volume de 578 páginas, cujo recheio se afigura de indispensável leitura por quantos, de memória débil, propendam a esquecer o que aprenderam e precisem de estímulos acrescidos para continuarem em dia com o seu passado e pelas gerações mais novas, obviamente descompensadas do suplemento testemunhal dos seus maiores. Neste sentido, é de realçar o trabalho duplamente útil de Ramiro Teixeira, que propõe como que uma viagem por um Portugal “estranho” para a qual estão convidados vários extratos de classe e etários do público ledor e ao mesmo tempo a indagação do que foi a “estranheza” de Ilse Losa ao ter de adaptar a sua cultura alemã à que vigorava no país de acolhimento. São extremamente interessantes algumas descrições da vida intelectual no Porto, designadamente no campo literário, rodando à volta da sua figura axial, Óscar Lopes.
Heterogeneidade temática. É impressionante a quantidade de acontecimentos inventariados por Ramiro Teixeira neste livro, da simples enumeração de obras literárias publicadas em cada ano até aos rasgados horizontes que abarcam as hecatombes do século XX na sua encenação mais cruel, da República espanhola ao advento do franquismo, da ascensão do nazismo na Alemanha ao Holocausto e no noticiar da intriga doméstica, desde o salazarismo dos primeiros dias até à morte do seu mentor. Tudo isto com a inserção da foto de capa de um livro de Ilse Losa a funcionar como separador entre cada bloco temático ou declaradamente informativo. A escolha dos separadores não foi inocente. A cada um deles corresponde, algures, texto crítico onde a capa reproduzida é antecâmara de juízo de valor e anúncio de interpretação. Por exemplo: a importância da intervenção de Ilse Losa na criação e divulgação da literatura infanto-juvenil. Às capas de «Faísca conta a sua história», «Nós e a Criança» ou «Beatriz e o Plátano» replica Ramiro Teixeira com a balizagem teórica para que as obras apelam e lhe merece particular atenção. A reprodução fac-similada de um texto manuscrito de reflexões da autora, sobre a sua condição de mulher em contexto tão especial como o portuense, fecha o volume com chave de ouro. Acerca dele, Ramiro Teixeira esclarece: “Os apontamentos que se seguem fazem parte de um vasto conjunto de manuscritos que a escritora elaborou e me confiou para suporte desta sua biografia. A heterogeneidade dos assuntos que tratam é evidente; uns reportam-se ao seu percurso existencial, outros são meramente opinativos, outros, ainda, dizem respeito às opiniões que terceiros manifestaram sobre a sua obra, etc. Entre aspectos triviais e memórias fragmentadas, este conjunto de textos, à semelhança de parte importante da sua obra, é tanto de coisas suas como nossas”. E logo a seguir: “Conforme acima refiro, apenas uma parte destes apontamentos da escritora é agora apresentado, quer por razões editoriais afins do número de páginas, quer porque alguns desses apontamentos se revestem de aspectos de natureza mais pessoal”.
Júlio Conrado
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