Toda a empreitada de pretensões emancipatórias, quando encontra os primeiros indicativos de seu reconhecimento, passa a ter que enfrentar um drama que talvez seja mais interno que externo, que talvez seja, inclusive, mais intenso que aqueles vividos em tempos de invisibilidade e isolamento periférico. É desse drama que vou tratar. Fazendo-me mais claro: ao passo que tais movimentos de emancipação de éticas e estéticas subalternizadas sentem, dose a dose, as delícias do reconhecimento, degustadas em forma de prestígios, condecorações, financiamentos, visibilidade e uma série de direitos que geralmente passam a gozar no decorrer dessa passagem, o sistema de funcionamento da maquinaria instituída de concessão gradual dessas benesses não foi elaborado fora desses embates sociais, enraizando-se, portanto, na mesma dinâmica social que operou a anterior invisibilidade desses grupos e que agora retende gerir e, em certa medida, fazer sua curadoria. Em outras palavras, esse maquinário invisível de gestão dos reconhecimentos elabora suas escalas de medição a partir do repertório de valores que compõe seu próprio solo cultural, ou seja, sendo mais contundente, somente do solo dos já reconhecidos poderia se erguer uma máquina moral “pública” de gestão dos reconhecimentos, essa espécie de sistema alfandegário de inclusão. Lembrando, no entanto, que antes mesmo de haver qualquer aproximação a tal sistema, ele já operava camuflado, uma vez que a própria condição inicial de “isolamento periférico” é justamente seu efeito primevo. Pois bem, portanto, no legítimo afã de galgar sua passagem à “terra dos reconhecidos”, à caixa de ressonância das vozes auditas, tais energias emancipatórias se deparam com essa imperativa escala de valores, agora mais descamuflada, com a qual terão que negociar a algum custo. Daí o drama paradoxal interno, já que nesse mesmo processo de emancipação, esses movimentos recebem, então, com mais evidência, o impacto dessas forças de contensão de características oxidativas. Sendo assim, podemos dizer que tal processo elástico de ajustamento não pode se passar incólume, tendo efeitos tanto para os movimentos quanto para a escala, ainda que o valor de dureza e imobilidade desta última, ancorado em sua solidez de hegemonia, seja bem maior que o dos primeiros, lhe permitindo conservar-se mais ou menos parecida por mais tempo. Em todo caso, é sobre os efeitos nos movimentos que quero me deter agora.
Força positiva. Lançados na malha do duro jogo da busca política pelo reconhecimento institucionalizado, toda a diversidade de éticas e estéticas que compõem a pluralidade, e mesmo os possíveis dissensos do movimento, passa a ser alvo de um processo de edição e aprisionamento classificativo, em muito contaminado justamente pela gramática de valores e éticas normativas que regem a gradação do próprio processo de reconhecimento. Em outros termos, pela capilaridade invisível da sociedade, o que seria um repertório de valores, não só estranho às energias emancipatórias, como determinante para suas condições subalternizadas, passa a compôr justamente o parâmetro em negociação com o qual será possível finalmente escapar ou amenizar gradativamente os agrouros da subalternidade. O drama está, portanto, nos ajustes que passam a ser conduzidos no interior do próprio movimento – efeitos colaterais dessa introjeção de engrenagens seletivas que, outrora estranhas à coletividade, agora engendram o avanço de seu reconhecimento. Nisso, partes antes constituintes passam a ser gradativamente condenadas, partes antes celebradas veem-se malditas e tornam-se alvos de exorcismo, a fim de que “o movimento”, agora mais coerente, mais uniforme, ainda que menos povoado, possa alçar outro nível. Falando das estéticas que pesquiso no Brasil: nas artes de rua, a pichação passa a ser inimiga; no funk, os bailes de corredor passam a ser a parte podre; no carnaval, os bate-bolas passam a ser os portadores da violência; no futebol, as torcidas organizadas passam a “afastar” as famílias dos estádios. Aposto, então, como advogado do diabo, na força positiva desses malditos, essa força de minoria radical, de irmã deserdada, que, justamente por ser incompatível a esses reconhecimentos, por ser isolada no lado mais fraco, se reforça. É no maldito desautorizado que se esconde, portanto, uma força enigmática de justiça, o elixir do todo perdido, a poção de comunhão com o plural; é nele, no último resíduo do descartável, que, por fim, estamos todos nós.
Gustavo Coelho
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