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Resistir é preciso

1. Constantemente, ouvimos alguém a quem foi dado o poder, a faculdade ou a oportunidade (político, professor, jornalista ou ocasional opinador), dizer, convicta ou displicentemente, que os portugueses são um povo de brandos costumes que, mesmo em tempo de crises agudas, propensas a reações intempestivas, ainda se respalda no sentimento de contenção de que a esperança é a última coisa a morrer.
Há outras opiniões. Umas sustentarão que é o medo de tempos piores que alimenta a branda resignação, reforçada pela ideia de que valerá a pena esperar por amanhã, como se espera por uma nova estação do ano. E se for um literato até poderá evocar Eça de Queirós, quando, em 1888, no seu artigo A Europa, dizia: “A ‘crise’ é a condição quase regular da Europa. E raro se tem apresentado o momento em que um homem, derramando os olhos em derredor, não julgue ver a máquina desconjuntar-se, e tudo perecendo, mesmo o que é imperecível – a virtude e o espírito.” Para sublinhar, mais à frente: “Temos já misérias, crises, dissoluções, velhas raízes que se despegam, prantos no vento; pior nos irá quando Dezembro vier; mas através de todas as vicissitudes sempre se conservará, como na Natureza, a eterna seiva, que é a eterna força.”
Outras sustentarão que a contenção dos portugueses não parte de uma estudada filosofia de vida, é antes um mal de alma que não tem cura, que os faz taciturnos e cantadores de fados tristes, incapazes de gerar uma cançoneta como aquela antiga, brasileira: “o que se leva desta vida é o que se come, o que se bebe e o que se brinca, olé!”. E se parece soltar-se nos períodos de férias de verão, entregue ao prazer dos banhos nas praias ou à euforia dos festivais, será como se o Big Ben tivesse parado para permitir a limpeza das faces.

2. No entanto, também é nas momentâneas paragens do relógio da vida que muitos portugueses se contêm, refletindo como Eclesiastes sobre A felicidade neste mundo: “Compreendi bem, que o bom para o homem está em comer, beber, gozar o bem-estar em todo o trabalho que suporta debaixo do sol durante todos os dias da vida que Deus lhe deu. Esta é a sua sorte. Deus dá ao homem bens e riquezas, e a possibilidade de comer delas. Disfrutar a sua parte e viver alegre no seu trabalho, isto é um dom de Deus. Não pensará nos dias da sua vida, porque Deus guarda o seu coração ocupado com a alegria.”
Apesar do espaço e do tempo que os separa, o monge budista Dalai Lama (Prémio Nobel da Paz em 1989) não destoava de Salomão quando predicava: “Só existem dois dias no ano em que nada pode ser feito. Um se chama antes e outro se chama amanhã. Portanto hoje é o dia certo para amar, acreditar, fazer e, principalmente, viver.”
Poderíamos conjeturar ainda sobre a eventualidade de o Papa Francisco, realista como se tem manifestado, dizer algo semelhante, esquecendo, porventura pragmaticamente, as críticas figuradas em antigas prédicas, como foram as do comediógrafo romano Plauto (homo homini lúpus) e do padre António Vieira, quando, no seu Sermão aos Peixes, comparava com os polvos os homens fortes (subentenda-se ricos e poderosos) que comem os homens fracos.

3. Ontem, como hoje, ninguém ousou afirmar que ser rico e poderoso é um pecado. Mas já Eclesiastes também advertia: “Aquele que ama o dinheiro nunca se fartará dele e onde abundam os bens abundam os parasitas.”
Por seu turno, Jesus seria perentório quando, à chegada ao Templo de Jerusalém, deparou com a Casa de Deus transformada num espaço de mercadores, banqueiros, cambistas e escribas, o que o levou a expulsá-los com um chicote feito de cordas, clamando: “Não podereis servir a dois senhores, a Deus e ao dinheiro, à luz e às trevas, à verdade e ao erro, ao bem e ao mal. (...) Tomai cuidado com os escribas, que sentem prazer em passear as longas vestes e gostam de ser cumprimentados nas praças públicas, dos primeiros assentos nos banquetes, eles que devoram as casas das viúvas, simulando longas rezas. Esses terão um castigo mais severo.”
E noutra pregação no Templo: “O vosso ouro e a vossa prata enferrujaram-se e a sua ferrugem dará testemunho contra vós e devorará a vossa carne como o fogo. Entesourastes nos últimos dias. O salário dos trabalhadores, que ceifaram os vossos campos, foi defraudado por vós, e clama; e os clamores dos ceifeiros chegaram aos ouvidos do Senhor dos Exércitos. Vivestes na terra rodeados de volúpia e de delícias; cevastes os vossos corações para o dia da matança.”
Os patriarcas citados acreditavam que esse Senhor dos Exércitos, num esperado Quinto Império do Espírito Santo ou após o Apocalipse, virá, encarnado ou em figura própria, para um Juízo Final. Seja como for, como asseverou Miguel de Cervantes, que foi escritor e combatente de várias guerras (qual Luís de Camões), “um dos efeitos do medo é perturbar os sentidos e fazer que as coisas não pareçam o que são.”
Donde, e em acordo com o Dalai Lama, “sendo hoje o dia certo para amar, acreditar, fazer e, principalmente, viver”, resistir é preciso.

Leonel Cosme


  
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