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Entre a reflexão analítica e o deserto do real

O “deserto do real” serve de metáfora ilustrativa do vazio argumentativo nas discussões que têm tido lugar no campo educativo. São falsas discussões.

Em «Bem-vindos ao Deserto do Real», o filósofo e psicanalista esloveno Slavoj Zizek realça um caso bastante singular para mostrar como, nos debates contemporâneos, os discursos vazios produzem falácias que mistificam a percepção da realidade, impedindo a reflexão analítica a seu respeito.
Conta-nos ele o imaginário caso de um operário alemão que obteve emprego na Sibéria, numa altura em que toda a correspondência era lida pelos censores. O operário combina um código com os seus amigos: se uma carta for escrita em azul, o que ele diz é tudo verdade; se for escrita em vermelho, é mentira. Após algum tempo, os amigos recebem uma carta em tinta azul, onde está escrito: “Tudo aqui é maravilhoso. As lojas vivem cheias, a comida é abundante, os apartamentos são grandes e bem aquecidos, os cinemas exibem filmes do Ocidente – o único senão é que não se consegue encontrar tinta vermelha”.
Com uma ironia entrecortada de erudição, ao aludir à falta de tinta vermelha, Zizek quer sublinhar que muitas das discussões atuais não passam de embustes, decorrentes, por exemplo, da indolência analítica para apreender o que está em jogo na arena social ou, por outro lado, resultam da astúcia retórica que, como expressão da ideologia, mostra de forma inversa – e, por vezes, perversa – partes do real.
De certo modo, a prosa zizekeana remete-nos às discussões no campo educativo. A indolência analítica nos tem conduzido, atualmente, a situações paradoxais. Pode-se dizer que uma delas consiste em tornar determinada abordagem pedagógica, que alcançou êxito em certa altura, em obstáculo ao prosseguimento do curso da própria Educação. Ou seja, relembrando o arguto pensamento de Álvaro Vieira Pinto, é de assinalar que métodos que foram bem sucedidos, como o de Paulo Freire, podem acabar se tornando um quisto, um entrave que impede o prosseguimento do seu próprio desenvolvimento.

Forma e conteúdo. A repetição constante de frases pseudoeruditas é quase sempre companheira da acomodação em relação à reflexão analítica e à problematização das abordagens que elas encadeiam.
Por esta autoestrada, descura-se o que está implicado no fato de não haver teoria da Educação sem teoria da finalidade em Educação, bem como se coloca de parte o significado da relação entre conteúdo e forma em Educação.
Detenhamo-nos neste último caso. Diferente do que assinalam determinadas abordagens, o conteúdo está para além dos conhecimentos, das disciplinas e dos currículos. Não é um adorno do espírito, mas um dispositivo de efetivação ontológica do ser humano. O conteúdo da Educação envolve a totalidade do processo educativo, tendo um caráter fundamentalmente social e, assim sendo, histórico. É pensado em função de cada fase e situação da evolução de uma comunidade. Portanto, perpetuar abordagens, atribuindo-lhes o mesmo estatuto em conjunturas diferentes, é, no mínimo, um contra-senso – a propósito dos autores clássicos, a sua grandeza reside, por exemplo, no fato de, em momentos diferentes, inspirarem novas démarches, não sendo então uma mera repetição do que eles formularam.
Quanto à forma, é preciso ir além da ideia, propagada por uma determinada pedagogia, segundo a qual ela tão-somente concerne aos procedimentos pedagógicos e às metodologias a partir dos quais o ensino é gerido. Esta é uma compreensão que separa forma e conteúdo, e também cria o conhecido ambiente de debates ociosos que têm marcado muitas discussões educativas. Discursos vazios, “espuma” de palavras, onde a retórica pseudoerudita (recheada de citações) diz tudo para não dizer nada. O foco predileto do tom palavroso daí oriundo refere-se aos procedimentos pedagógicos, às técnicas, à operacionalização didática, etc., como se apenas isso representasse o fundamental no progresso do ensino.

Vermelho como azul. A forma da Educação é função dos seus fins sociais, tendo-se que ela é indissociável do conteúdo, isto é, forma e conteúdo são aspectos de uma mesma realidade, qual seja o ato educacional como um todo. Relembrando mais uma vez Álvaro Vieira Pinto (em suas clássicas “Sete Lições sobre a Educação de Adultos”), podemos dizer que o conteúdo determina a forma da Educação na qual é ministrada; por sua vez, esta determina a possibilidade da variação do conteúdo, aumentando num processo infinito. A execução formal da transmissão de certo conteúdo instrutivo possibilita a abertura desse mesmo conteúdo para se incluir em algo mais, como adiamento e progresso do saber.
Isto posto, podemos dizer que o deserto do real, que no princípio realçámos, serve de metáfora ilustrativa do vazio argumentativo nas discussões que têm tido lugar no campo educativo. São falsas discussões. Resta saber até quando continuará a conceber-se a tinta vermelha que corre nas discussões como sendo tinta azul.

Ivonaldo Leite


  
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