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Os sapatos

“Comprava-se um número acima e enchiam-se com mais uma meia ou com um bocado de jornal, para durarem mais um ano enquanto o nosso pé crescia.”

O meu avô não tem muita idade. Nem parece um avô. Não está reformado, tem muitas reuniões e escreve num jornal. Não é como os avós de que ouvimos falar nas histórias nem nos desenhos da televisão; não tem barba branquinha, nem óculos, anda de bicicleta, joga futebol e faz caminhadas comigo. É um avô muito fixe.
Ele diz que era muito novo em 1974 e conta-nos muitas histórias daquela época e também como era antes. Foi assim que, há pouco, me falou do primeiro dia de aulas.
Eu estava muito contente porque ia com a minha mãe comprar uma mochila e outras coisas para a escola, mas os meus pais estavam aflitos com o que se ia gastar. Foi aí que o meu avô disse logo:
– Parem de falar do que era antigamente, porque eu sei muito bem o que custava ir para a escola. E nem todos iam.
– A escola não era obrigatória, avô?
– Eles diziam que sim, mas se tivéssemos de ir trabalhar para se comer em casa, o que faziam? Nada! E ir para a escola não era fácil, com as dificuldades que havia em casa. Em cada 100 meninos, só vinte e tal conseguiam fazer a 3ª classe; e só cerca de três conseguiam estudar no Secundário.
– Gastava-se muito nas coisas que se compravam para as aulas?
– Não, nem era isso. O trabalho, mesmo de meninos pequenos como tu, era necessário para se poder comprar pão ou mais uma sardinha para casa. Eu não tive assim tantas dificuldades, mas comi o primeiro iogurte quando tinha 15 anos. Não era como agora contigo. O que se gastava com a escola era pouco: os livros eram dos irmãos mais velhos ou emprestados de conhecidos. Depois, não havia mochilas, mas um saco ou uma pasta velha para levar tudo. Mas havia que ter mais cuidado com a roupa, e eram precisos sapatos.
– Sapatos?!
– Sim, sapatos ou socos, porque era proibido andar descalço. Eu, uma vez, até fui preso por andar descalço.
A minha mãe zangou-se logo. Disse ao meu avô para não contar que tinha sido preso, porque era uma vergonha. Mas ele riu-se e continuou.
– Eu ia para a escola com sapatos, o que era um luxo. Mas só mais dois iam com sapatos. Os outros iam com socos, e quando havia neve ou lama era difícil arrastar os pés. Para jogar futebol, eles jogavam descalços e eu também. Havia uma lei que proibia andar descalço – diziam que era para não parecermos um país de miseráveis, com pessoas descalças pela rua, burros a fazer transportes por caminhos poeirentos e de longe em longe um carro, nós até dizíamos olha um “lá vai um”... E viam-se muitas senhoras de lenços na cabeça e de preto, por costume ou de luto. Muitas mulheres estavam de luto porque os pais ou outros familiares morriam muito novos – eu, por exemplo já não conheci os meus avós, só a avó materna. E os filhos às vezes morriam na guerra, nas colónias, e outros emigravam e estavam muito tempo sem voltar. Para não falar de alguns que eram presos por discordarem do governo e às vezes até morriam na prisão.
– Mas por que foste preso, avô?
– Bem, eu estava a jogar futebol no adro da igreja e estávamos todos descalços. Uns porque estavam com socos, outros, como eu, para não gastarmos os sapatos. Nisto apareceu um polícia. Os outros fugiram, mas a mim agarrou-me logo e levou-me à minha mãe para ela pagar a multa. A minha mãe ficou muito zangada com o polícia, porque ela também não queria que eu jogasse a bola com os sapatos, para não os gastar.
– E como faziam para não gastar os sapatos?
– Comprava-se um número acima e enchiam-se com mais uma meia ou com um bocado de jornal, para durarem mais um ano enquanto o nosso pé crescia. E quando íamos à cidade, como íamos a pé, os crescidos e os mais pequenos calçávamos um sapato de cada vez.
– Um de cada vez?!
– Sim, à ida calçava-se o pé direito e o outro sapato ia no bolso. À vinda fazia-se o contrário. E às vezes eram muitos quilómetros.
– Mas para quê?
– Porque com um pé calçado já não se podia ser multado, pois já não íamos descalços.
Fiquei a pensar que ouvir estas coisas era como uma viagem ao passado. Mas o meu avô nem é velho... Que tempo era aquele, com tantas pessoas que conhecemos e que se lembram tão bem de tudo aquilo, em que ir para a escola era tão difícil e até impossível para tantos?

Angelina Carvalho


  
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