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Um herói do 25 de Abril com quem me cruzei fugazmente

«O Senhor dos Anéis» de J.R.R. Tolkien é um portentoso romance mitológico sobre a amizade, o amor, a coragem, a camaradagem e sobre o Poder e os seus efeitos corruptores, entre outros temas menores. Peter Jackson transformou-o num agradável filme de aventuras, com interessantes efeitos especiais. Como seria de esperar, eliminou várias personagens do romance, entre as quais Tom Bombadil. Deve ter pensado que só atrasava a progressão da aventura. Mas os leitores atentos do romance sabem que Tom Bombadil é uma das suas personagens mais originais e, sem dúvida, a mais enigmática de todas.
O próprio Tolkien estava bem consciente do seu caráter enigmático e quis deliberadamente mantê-lo. Numa carta escrita em 1954, declarou: “mesmo numa era mitológica, deve haver alguns enigmas, como há sempre. Tom Bombadil é um deles (intencionalmente)”. No entanto, mais adiante, na mesma carta, levantou uma ponta do véu, ao acrescentar: “Tom não é uma personagem importante – para a narrativa. Suponho que ele tem alguma importância como um ‘reparo’ [comment]”. E prossegue explicando que cada um dos lados na «Guerra do Anel» luta pelo Poder. Tom, em contraste, embora sendo muito potente, renunciou ao Poder, numa espécie de ‘voto de pobreza’, de ‘atitude pacifista natural’.
Tom é portanto uma ‘alegoria’, uma ‘incarnação particular’ de um valor moral. É “o espírito que deseja o conhecimento das outras coisas, da sua história e natureza, porque são ‘outras’ e que não se preocupa minimamente em usar o conhecimento para as fazer ou anular”. A sua relação com as coisas é a mesma que a ciência pura (p.ex. “a Zoologia e a Botânica”) tem com a tecnologia (p.ex. “a criação de gado e a agricultura”). Nesse sentido, diz Tolkien, a presença de Tom revela que há pessoas e coisas no mundo para quem a guerra pelo Poder é largamente irrelevante ou, pelo menos, não o mais importante, e cuja natureza não pode por isso ser afetada ou transtornada por tal Guerra [Tolkien, Letters].

Tom Bombadil. “Quem é então Tom Bombadil?”, pergunta Frodo, o Hobbit encarregue de transportar e destruir o anel do poder supremo, o Anel Um, forjado por Sauron, e a pergunta é também a de qualquer leitor(a) do romance.
Sabemos que o Anel Um não o afeta minimamente, que está em comunhão profunda com todas as criaturas que crescem livres na Terra Média, mas que não é um dos Maiar, como Gandalf ou Sauron. E sabemos que passa a vida a cantar, que é incapaz de separar o cantar das suas outras atividades: caminhar, falar, trabalhar, no que se distingue dos Homens, dos Elfos, dos Anões, dos Entes e de todas as muitas espécies de criaturas que povoam a Terra Média.
Inclino-me para responder, como sugeriu o próprio Tolkien, que Tom Bombadil representa um ideal ético: o desapego e a resistência vitoriosa a tudo o que é cruel, brutal, malévolo, impiedoso, fanático, ganancioso, corrupto, mesquinho.

José Afonso. Se tivesse pois que escolher o Tom Bombadil da história que antecedeu o 25 de Abril de 1974 e dos anos que imediatamente se lhe seguiram, não hesitaria em designar José Afonso, Zeca para os amigos. Com ele me cruzei duas vezes.
Uma foi antes do 25 de Abril, numa cidade francesa, onde eu era então estudante exilado e ele foi cantar. Depois do concerto, um grupo de portugueses ficou com ele a conversar e eu estava entre eles. Lembro-me que mal abri a boca. Só queria escutar.
A segunda vez foi no princípio dos anos 1980. Cerca de cento e tal pessoas de um bairro de lata perto da escola onde eu trabalhava, num município dos arredores de Lisboa, tinham ocupado um bairro camarário que tinha sido construído para ser arrendado a pessoas como elas, mas que, uma vez pronto, foi posto à venda. Telefonei para casa dele e a esposa disse-me que ele se encontrava num hotel de Lisboa numa sessão de distribuição de prémios da Associação Portuguesa de Escritores. Apareci lá de rompante, apresentei-me, expliquei-lhe o que se passava e perguntei-lhe se aceitava ir cantar sem qualquer pagamento num concerto de solidariedade com esses moradores, cuja receita seria para eles. Apenas me perguntou: “é para quando?”.
O concerto realizou-se com ele, Vitorino e outros cantores. Os moradores aguentaram firme todos os esforços feitos para os desalojar e conseguiram que os apartamentos lhes fossem arrendados. Ainda hoje muitos lá vivem, creio. E foi essa a segunda e última vez que falei com Tom Bombadil em carne e osso.

José Catarino Soares

PS. Com este artigo presto a minha modesta homenagem a uma das duas pessoas que, para mim, melhor incarnam o simbolismo da data 25 de Abril de 1974. À outra, capitão Salgueiro Maia, dediquei um artigo (PÁGINA no 193, 2011) em que me permiti também, por licença poética, assimilá-lo a Samwise Gangee, outra personagem de «O Senhor dos Anéis».


  
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