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A Filosofia é o pão do espírito

Talvez tranquilize as consciências inquietas pensar que só a terra fica e tudo o mais são vaidades e vento que passa. É neste ponto que a Filosofia nos pode servir, levando-nos em busca das energias que se refundem num ‘grito’.

Na PÁGINA de Inverno de 2012, a professora de Filosofia na Universidade do Mar Egeu (Rodes, Grécia), Elena Theodoroupoulo, numa entrevista a todos os títulos notável (A Educação não é um problema de Economia, mas de Filosofia) relata as dificuldades que no seu país atravessa o ensino daquela disciplina nos diversos graus, apesar de neste tempo de crises sistémicas (económicas, políticas, morais, culturais), sentidas individual e colectivamente, quer na Grécia, quer na Europa quase em geral, a Filosofia se apresentar como que um recurso terapêutico para ajudar as almas inquietas e em risco de pré-loucura – como não as veria decerto o controverso Jacques Lacan, quando, falando de uma loucura assumida, dizia: “Não é doido quem quer”...
Desde a sua origem, na Antiga Grécia, Filosofia significa amor à sabedoria, estudo dos problemas fundamentais relativos à existência, ao conhecimento, aos valores morais e estéticos, tendo como método a argumentação lógica e a análise conceptual, portanto, tão distinta da mitologia e da religião como da pesquisa científica baseada em procedimentos empíricos.
É com este sentido que a entrevistada manifesta as suas reservas sobre o futuro daquela disciplina, “com os instrumentos, os utensílios, os valores e os conceitos do passado, ainda que com um vocabulário técnico que parece ser moderno”. Ou como dizia George Steiner, em «Linguagem e Silêncio» (Gradiva, 2014), “quase não há um ramo da filosofia moderna em que não encontremos os numerais, os itálicos, os radicais e as setas com que o lógico simbólico procura substituir o exército desgastado e rebelde das palavras.”
Pois “o que devemos esperar da Educação é que, sendo capaz de alterar os conceitos, os valores, os referenciais, possa representar um papel transformador, um papel inovador nas sociedades”, porque “se há uma crise de sentido, nós não respondemos a essa crise com respostas prefabricadas. [...] É preciso não pensar apenas ao nível da superfície. É preciso ousar, conforme Lorca dizia, mergulhar até ao ponto mais sombrio do grito.”

Ousar, mergulhar. Como é sabido, Federico García Lorca – assassinado, na Espanha franquista, por causa das suas convicções progressistas, após uma estada em Cuba e nos Estados Unidos – firmou na sua vida e obra o total repúdio pelo american way of life, que prometia a felicidade a quem subalternizasse as exigências do espírito (liberdade, igualdade, honra) às tentações do ego (prazer, riqueza, ostentação) – mas antes Midas que Epicuro.
Então, Lorca viu que os ‘chamados’ e os ‘eleitos’ eram os americanos brancos e ambiciosos, que aceitavam pagar o custo, se necessário, de uma alienação sub-rogada, porque esperadamente temporária. ‘Excluídos’ eram os americanos negros e os hispânicos pobres, sujeitos a uma forçada alienação escravizante, que lhes coartava a natural ipseidade, isto é, o direito a serem eles próprios e não outros, podendo livremente eleger o seu Daimôn (ou alter ego). Na verdade, a estes só restara reclamar o sonho (o grito) de Martin Luther King. Parafraseando a professora grega: “Era preciso não pensar apenas ao nível da superfície. Era preciso ousar, mergulhar até ao ponto mais sombrio do grito.”
Na superfície está hoje o homem economicus, que se arroga o poder de subalternizar o faber e, não confessadamente, o sapiens, pensando que pode reunir e dominar as principais qualidades do ser humano: capacidade de inventar utensílios, produzir alimentos, descobrir remédios e transformar a natureza, dando um sentido à vida. Mas uma qualidade lhe escapa na escolha do modus vivendi: dominar a consciência, essa que está no fundo do ser e, em assomos de lucidez ou de loucura, lhe diz o que está certo ou errado na visão da realidade.

Até à profundidade do ser. Disse-nos Rousseau que, sendo o Homem naturalmente bom, era a sociedade, através das instituições políticas, a culpada da sua degeneração. E para neutralizar os erros e os vícios sociais preconizava um pacto de associação sem submissões. Seria um contrato social, livre e conscientemente assumido, no trilho de um homo sapiens sapiens.
Só que a vida do ser humano é um eterno percurso entre a necessidade e o desejo, donde, o desafio entre o homem sábio e o homem económico teve como resultado que a consciência fosse determinada pelas condições materiais da existência – como nos alertou Marx – e o que seria um imperativo da ética cedesse às compulsões (ou à pré-loucura) do supérfluo, da riqueza, da vaidade e da ostentação.
Daqui à substituição de um pacto de vontades por uma luta de classes foi um passo, como vemos hoje na superfície da terra. Mas talvez tranquilize as consciências inquietas pensar, como Eclesiastes, que só a terra fica e tudo o mais são vaidades e vento que passa. É neste ponto que a Filosofia nos pode servir, como pão para a boca, levando-nos a mergulhar até às profundidades do ser em busca das energias que se refundem num ‘grito’.

Leonel Cosme


  
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