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Por que é feriado?

Lembro a conversação que ouvi numa manhã de abril, em 1999, quando trabalhava numa escola na periferia de Lisboa. Os bairros em redor tinham-se transformado, pouco a pouco, de habitação precária para blocos de betão com o nome de habitação social, até se tornarem precários e serem
implodidos.
Todas as crianças da escola vinham destes bairros: na altura um grupo restrito de crianças de origem cigana, um grupo ligeiramente maior de crianças não cigana, de origem europeia, e um enorme grupo de crianças de origem africana. Todos nascidos em Portugal, nem todos portugueses, devido à prevalência do jus sanguinis sobre o jus soli, introduzido por um dos governos pós-25 de Abril.
Nos bairros em redor da escola, o upgrade tinha mesmo acabado de se realizar, o que fazia com que as crianças se queixassem arduamente de terem perdido a liberdade de andar na rua, brincar às escondidos e não se preocupar muito com os carros, que, devido ao estado das ruas, andavam muito devagar ou nem sequer entravam no bairro. Claro que valorizavam: “agora tenho um quarto com uma porta verdadeira”, “agora tenho um chuveiro que funciona”. Estavam confusos, procurando perceber o que mudou para melhor e para pior.
No recreio, um rapaz representante da diáspora cabo-verdiana, sentado nas escadas em frente à porta do edifício de plano centenário, olhava no caderno de exercícios que recebe o título eufemístico de livro, ainda que escolar, para uma fotografia desfocada e uma figura desenhada com uma espingarda e um cravo na mão. Foi então que o ouvi perguntar, ao colega:
­­– Ouve, por que é que o 25 de Abril é feriado?
Ao que o colega, mais velho, responde:
– Então não sabes? É o dia que os tugas deixaram de mandar na gente lá, para mandar na gente cá.
Não pude deixar de pensar: quem fala aqui?
Lembrei-me desta conversa, quando, em 2012, me sentei num autocarro, ao lado de um jovem que, ao reconhecermo-nos, aproveitou o reencontro para me atualizar.
Era um dos jovens, na altura, com algumas dificuldades em relação à identidade e à nacionalidade. Lembrou-me algum do trabalho que tínhamos desenvolvido juntos, com a turma, investigando o bairro, o comércio local, a amizade e o ódio entre as pessoas, o país e o mundo, questionando candidatos a cargos políticos, para depois destacar projetos de trabalho que levaram a ações de solidariedade, localmente e globalmente.
Ele falava e eu lembrava-me das muitas perguntas, frequentemente por correio eletrónico, a meio mundo. Como quando inquiriram a embaixada da Suíça em relação a uma notícia de jornal sobre crianças portuguesas nas escolas suíças e como ficaram orgulhosos a receber uma resposta de um dos adidos culturais, iniciando novas conversas em que aprenderam a diferença entre o conselho de cooperação educativo da turma e o conselho nacional da federação suíça...
Depois, com muito orgulho, testemunhou que, quando acabou a sua formação profissional na área do ar condicionado, viu a oportunidade para se especializar na montagem de painéis solares. E anunciou:
– E agora vou trabalhar com o meu pai e o meu tio, que montaram uma pequena empresa de instalação e manutenção de painéis solares.
– Aqui no bairro?, perguntei eu.
– Estás maluco, Pascal? Na Suíça! O meu pai já está lá. O meu tio está cá e lá, só estava à espera que acabasse o curso. E agora vamos todos, a minha mãe já está a fazer as malas. Sabes, Pascal, cá no bairro só ficam os que querem. E os portugueses. Os outros vão todos embora. Já não há nada para fazer, para a gente, cá.
Saímos juntos do autocarro. Ele abraçou-me e disse “obrigado por tudo!”, ao desaparecer rapidamente na entrada do metro. Eu fiquei parado, a pensar nesta frase de despedida. Obrigado por tudo...
O que fizemos? Foram três anos de trabalho juntos, três dos seus vinte e dois. Aprenderam o mundo, enquanto eu aprendia o mundo que eles me contavam. Discutimos juntos a elaboração de 30 jornais de turma e perto de 50 estudos. Organizámos saídas para o bairro, para a cidade, para Lisboa, para fora de Portugal. Documentámos e apresentámos aos outros o que aprendemos. Construíram uma identidade.
Os “tugas” passaram a portugueses. Deixaram de mandar nele. Tornaram-se simplesmente vizinhos. Até agora. A família mudou-se e a pequena empresa cabo-verdiana instala painéis solares na Suíça.
Portas que Abril abriu?

Pascal Paulus


  
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