O desafio, hoje, é disputar uma Escola que incorpore realidades diversas para superá-las; que seja capaz de estreitar margens e apresentar possibilidades reais de outros mundos.
Vargem Grande, no final dos anos 1990, era um bucólico bairro carioca, bem longe dos tumultos da cidade grande. Mas isso não o impedia de reproduzir as mesmas desigualdades (inclusive espaciais) características do Rio de Janeiro: condomínios de classe média lado a lado com casebres e favelas. Num desses dias, num passeio ao redor da escola pública onde trabalhava, ao atravessar um pequeno rio retificado, vi apontando para ele vários canos de esgoto que saíam das casas pobres, às suas margens. Apesar, disso, as águas eram transparentes e algumas crianças brincavam nelas, despreocupadamente. Então, como daria aulas de Educação Ambiental à tarde, para crianças da faixa de 10-12 anos, pensei em utilizar minhas observações para falar sobre esgoto, água e saúde pública. Entrei em sala, com a disposição militante de um jovem professor de Geografia, há pouco saído das bibliotecas universitárias para o pretenso trabalho de conscientização dos oprimidos. Num determinado momento, quando relatei a cena dos meninos brincando na continuação do esgoto, uma garotinha se levantou. Pele negra, cabelos cheios, uma mão na cintura e outra apontando pra mim, disse, indignada: “Professor gosta tudo de esculachar a gente. Vai dizer que onde você mora não tem valão?” Impactado com os detalhes e o conjunto da obra, demorei alguns segundos para responder um lacônico “não” e voltar à explicação da aula. Isso foi há cerca de quinze anos, mas ainda hoje a imagem é bem viva na minha memória. Chego a ouvir o som da voz fina e rouca da criança, estraçalhando muitas convicções que eu trazia e escancarando o que a rotina e as macronarrativas insistem em escamotear. É verdade que não entendi, na hora, o que havia acontecido e demorei muito tempo para ter a dimensão do abismo que se descortinava naquela sala. Como dizer que o mundo não é um grande valão, quando o mundo que ela apresentava para mim era assim? Como dizer que as pessoas no mundo não convivem todas com seus valões, quando ele está ali, presente como os camelos do deserto de Borges, no mundo que se faz como o único acreditável e possível? Ao mesmo tempo, como aceitar a naturalização da existência de abismos, ou melhor, um enorme valão simbólico que separa pessoas, classes, grupos, fazendo com que os encontros sejam realizados de forma asséptica, marcados por postos, posições e outras bolhas de contato? Tão cruel quanto sua ignorância foi a minha ignorância sobre sua realidade e limites de visibilidade. O problema é que a minha ignorância não criava para mim limites nem horizontais nem verticais. Nela, nem a circulação na cidade, nem as possibilidades de mobilidade social se obstruíam para mim. O mesmo não posso afirmar sobre a menina e as outras e os outros tantos, meninas e meninos, com seus valões hereditários. Como uma profecia que provavelmente se cumpre. Mas, ao final, profecia não se cumpre por obra divina e sim porque há um conjunto de ações e pensamentos que fazem com que ela seja cumprida. O mais impressionante, e talvez por tão explícito o absurdo seja assim mais velado, é que o palco da cena era uma escola pública. Seus anos de escolarização – para estar na 4ª série, deveria ter ao menos outros três de vida escolar – não possibilitaram alguma perspectiva diferente daquela que temos e a Escola que temos para a sua construção. Numa sociedade cínica e de capitalismo predatório, como a brasileira, a universalização do acesso e aumento da escolarização trouxeram novas modalidades de reprodução das desigualdades, com a desqualificação de determinadas formas e circuitos escolares, assim como uma apropriação do sentido da Escola pelo mercado. O desafio, hoje, é o de disputar novos sentidos para uma instituição que se apresenta como importante ferramenta na manutenção do que está aí. Uma Escola que incorpore as realidades diversas para superá-las; que seja capaz de estreitar as margens dos valões e apresentar possibilidades reais de outros mundos, possíveis hoje ou não.
Roberto Marques
esculachar - gíria que significa debochar, ridicularizar valão - termo popular utilizado para rios retificados, geralmente com esgoto despejado in natura
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