Está em causa o encaminhamento segregativo de alunos com insucesso no ensino regular para uma via escolar claramente alternativa, mas desvalorizada, configurando uma alteração substancial do Ensino Básico, que obedece a um plano curricular unificado.
Nos finais de Setembro, o Ministério da Educação e Ciência deu à luz um documento que introduz no sistema educativo português uma inovação verdadeiramente preocupante. E não se trata de uma expressão retórica, se se tiver em conta o significado político, cultural e pedagógico que essa inovação comporta. O documento em causa é a Portaria no 292-A/2012, de 26 de Setembro que, tem como objectivo estabelecer “os princípios orientadores da organização e gestão do currículo, bem como da avaliação e certificação da aprendizagem do nível básico de educação, definindo a diversidade da oferta formativa deste nível de ensino”. Por detrás desta prosa anódina, onde cada palavra parece justificar-se apenas à custa da rotina curricular que a criou, acoita-se uma das medidas estratégicas que maior agressividade transporta consigo contra os ideais democráticos do sistema educativo português. Continuando a valer-se dum estilo blandicioso e ‘inocente’, a prosa ministerial só muito sibilinamente vai revelando o que verdadeiramente está em causa: a introdução no sistema educativo português do carácter dual da educação escolar, aquilo que o texto designa pela expressão “cursos vocacionais orientados para a formação inicial dos alunos”. E quem porventura temesse os seus efeitos nefastos sobre a dignidade democrática da instituição escolar, enquanto a esta compete a defesa e a protecção dos mais frágeis, logo o texto ministerial apazigua através da enumeração infindável dos benefícios esperados. Vejamos: “Com esta via educativa pretende-se completar a resposta a necessidades fundamentais dos alunos e assegurar a inclusão de todos no percurso escolar. Estes cursos devem garantir uma igualdade efetiva de oportunidades, consagrando alternativas adequadas e flexíveis, que preparem os jovens para a vida, dotando-os de ferramentas que lhes permitam vir a enfrentar no futuro, também, os desafios do mercado de trabalho”. É caso para nos interrogarmos sobre o que tem andado o sistema a fazer até à chegada deste momento em que os “cursos vocacionais” são apresentados e reconhecidos como os grandes redentores do sistema educativo português. Ou tratar-se-á de um discurso que imita bem o que poderá ser o exercício de ocultação da má consciência? Em boa verdade, como pode reconhecer-se todo este conjunto de virtudes a uma modalidade de ensino que se propõe segregar, a partir dos 13 anos, todos aqueles que são penalizados por múltiplas repetências, remetendo-os para o limbo do trabalho, de onde apenas sairão por força de algum milagre? Porque é isso, efectivamente, que está em causa: o reencaminhamento segregativo daqueles alunos com insucesso no ensino regular para uma via escolar claramente alternativa, mas desvalorizada, o que configura uma alteração substancial do modelo de organização do sistema de Ensino Básico, que, como se sabe, obedece a um plano curricular unificado, conforme determina o artigo 8º da Lei de Bases do Sistema Educativo. O carácter alternativo e desvalorizado dos cursos vocacionais está formalmente assumido na impossibilidade de regresso directo à via regular. Os alunos que eventualmente o queiram fazer terão de sujeitar-se aos exames finais de cada ciclo, mesmo que tenham concluído com êxito os cursos vocacionais. E, todavia, as novas medidas constitutivas dos novos cursos vão fluindo no papel com a maior naturalidade deste mundo, como se a iniciativa ministerial se limitasse a corresponder, muito espontaneamente, às expectativas e desejos dos adolescentes e dos seus encarregados de educação, cuja anuência, declarada por escrito, está expressamente prevista no documento. Tudo se passa como se a responsabilidade última da iniciativa coubesse, afinal, aos pais e encarregados de educação... É inevitável invocar aqui a figura de Bernard Charlot, que estudou profundamente a experiência escolar dos alunos franceses forçados a frequentar o LP (liceu profissional) por falta de competência escolar para serem admitidos no liceu clássico. São dele estas palavras: “Para todos esses alunos, a orientação para o liceu profissional é vivida como uma violência e provoca uma profunda ferida narcísica”. As medidas agora tomadas passam a uma distância infinita desta realidade. E a própria letra da Constituição da República parece ter sido sumariamente ignorada, com o Estado reduzido a uma entidade entorpecida. Registemos, entretanto, para que conste: “O Estado promove a democratização da educação e as demais condições para que a educação, realizada através da escola e de outros meios formativos, contribua para a igualdade de oportunidades, a superação das desigualdades económicas, sociais e culturais, o desenvolvimento da personalidade e do espírito de tolerância, de compreensão mútua, de solidariedade e de responsabilidade, para o progresso social e para a participação democrática na vida coletiva” (Constituição da República Portuguesa, artigo 73, nº 2).
Manuel Matos
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