Quando o meu filho, há tempos, chegou das aulas e me perguntou se conhecia a história da nau catrineta, ri-me e disse que toda a gente a tinha aprendido na escola. E não resisti à tentação de começar a dizer os primeiros versos da Nau Catrineta que tinha muito que contar. Mas ele respondeu que a que ele sabia era ainda mais engraçada, mais entusiasmante, que era o poema “A Nau Camioneta por essas fronteiras fora”. Contou então que nesse dia tinha aprendido na escola a história da Nau Camioneta, que se passava no século passado – esse século a que eu, o pai, os tios e avós, tão velhos, pertencíamos. Falou de um texto que pôs os jovens alunos face a uma realidade que quase todos desconheciam. Disse-me que na aula de Educação Visual e Tecnológica tinham lido um texto, um poema, para fazerem uma banda desenhada (BD) enquanto aprendiam o que eram pranchas, vinhetas, balões. Esse texto era uma história muito interessante, e recitou: reza a história emigrante / de milhares idos a salto / alguns iam como gado em camionetas tapadas. E acrescentou: – Isto é história de verdade, não é? Pode vir nos livros de História, mas os meus colegas têm tios e avós que passaram por isto, é como se estivéssemos a fazer uma viajem ao passado, mas aqui pertinho, o que torna isto ainda mais emocionante: A sua Nau Catrineta / chamava-se Camioneta / e França era a sua meta. Percebi, então, que ele falava de uma outra saga: a história dos portugueses que, em meados do século passado, partiam a salto para emigrarem, sobretudo para França, numa camioneta de muito desconforto e bastante perigo, pois, na maioria das situações, os que nela viajavam estavam clandestinos, sem documentos nem passaporte. O meu filho falou do entusiasmo com que os alunos estavam a passar para a BD a história daquelas pessoas a quem a miséria, a fome, a chamada de alguns familiares que tinham avançado primeiro, os iam convencendo a partir e como o faziam: muitas vezes de noite, atravessavam caminhos pelo monte, onde por cada penhasco / mil olhos espreitavam, aos olhos de quem fugia e de tudo duvidava / desde as sombras das montanhas / à sebe que se agitava, carregados com alguns sacos, ou trouxas, e alguns poucos alimentos – enchidos, broa, algumas castanhas – e iam juntar-se a grupos de outros companheiros para se encontrarem com o passador. Para esta viagem vendiam tudo o que tinham e muitas vezes eram enganados, que o diga quem passou / pela dos falsos passadores / no seu tão vil intrujar. E contou como todos os alunos faziam perguntas sobre as fronteiras vigiadas, os pides e bufos, sobre a Guarda Civil quando Franco governava, porque estava a Castela imensa de pavores bem semeada ou sobre a travessia dos Pirenéus, que se fazia a pé, enterrando-se na neve, onde alguns morriam mesmo. Também quiseram saber da moeda nos diferentes países, da falta de dinheiro quando chegavam, de como era difícil não saber a língua... E por isso lembraram-se de familiares que ainda são emigrantes, mas também dos imigrantes que conheciam e viviam perto deles. Quando, depois, me mostrou a reprodução do trabalho conjunto que tinham feito, compreendi a comoção que, coletivamente, colocaram naquela tarefa. Era uma BD carregada de pormenores: desde os farnéis aos rostos crispados de medo, às casas esvaziadas para tudo se vender, aquela nau camioneta tinha velas bem diferentes / os cascos eram pneus. Essas histórias faziam-nos lembrar também de muitas coisas que estavam a acontecer agora, mas que antes eram piores, disse o meu filho, porque muitos deles não sabiam ler nem escrever. Percebi, então, o peso da pergunta que uma aluna fez no final – e que o meu filho gostaria de ter colocado também: “Professor, porque escolheu esta história?”
Angelina Carvalho
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