A ideia da existência de um outro naturalmente inferior talvez seja um dos pontos mais intrínsecos da lógica moderna-colonial e favoreça todo o processo de dominação. Sem que nos demos conta, vamos alocando pessoas em diferentes categorias, destinando-lhes lugares e saberes. Sabemos por elas e o que elas podem saber.
No encontro em um curso de formação para profissionais que irão atuar com adolescentes autores de ato infracional, vamos percebendo como esses meninos e meninas são colocados com tamanha naturalidade em um lugar onde quase perdem sua humanidade. O debate sobre a educação a que têm direito, entendida não no sentido formal, mas entendendo serem responsáveis todos os profissionais das instituições sócio-educativas, ou seja técnicos e agentes sócio-educativos, propõe-se um local no qual o caráter educativo seja primordial. No entanto, como travar relações baseadas em uma perspetiva humanizadora, se a lógica que impera é muitas vezes a do ‘menino monstro’? Um breve olhar para o processo de encarceramento dos adolescentes talvez nos ajude a pensar essa questão. Nos últimos 10 anos, temos um aumento significativo de um novo modo de institucionalização, que é a privação de liberdade por decorrência de processo judicial. Segundo a Secretaria de Direitos Humanos, em 1996, tínhamos no Brasil 4.245 adolescentes internados no sistema socioeducativo; esse número subiu para 9.555 em 2002 e hoje corresponde a 14.074. O aumento corresponde a 325%. O Rio de Janeiro tem cerca de 1000 adolescentes internos, significando 7% do total. Não há dúvidas que todos ali querem oferecer o que há de melhor, fazer parte de um importante processo educativo, ou como entendem, de ressocialização. No entanto, o modo como veem os meninos atravessa o que entendem como bom, como educação. Ao conceber uma sociedade na qual o indivíduo é a parte mais importante, onde se considera que todos nascem com as mesmas oportunidades e o destino é traçado a partir da escolha de cada um, em uma lógica em que o mérito determina o sucesso ou o fracasso, o menino que está interno por ter cometido ato infracional é o responsável único e exclusivo por ali estar. Nesse sentido, se ali está é porque o erro está nele, ele é a “sementinha do mal”; deve ser corrigido e, para ser possível combater tal “desvio”, passa a ser necessário o uso da força, da violência, da hierarquia e de uma forte disciplina. Juntamente com a lógica do mérito, e somando-se a ela ou justificando-a, temos explicações de caráter genético (“ele comete ato infracional porque está no sangue”) ou determinista (“se formos ver bem, o perfil dos meninos é um só, porque isso vai se aprendendo no meio onde vive”), como colocam alguns dos alunos. Nenhuma dessas teorias para explicar o envolvimento com atos infracionais é nova. Vários estudos da criminologia nos ensinaram como tais lógicas serviram para a manutenção dos processos de dominação, repressão e opressão das classes populares. Devemos, porém, observar como tais aspetos também estão presentes nas mesmas categorias, quando falamos de processos sócio-educativos. Ora, se entendemos que a questão dos adolescentes autores de ato infracional está estritamente relacionada à sua personalidade, concebida de modo tal que não é passível a interferência de políticas públicas, tendemos a aceitar ser ele naturalmente inferior e que deve ser mantido em unidade de internação. A compreensão desse adolescente como “menino monstro” que deve ser punido para se adequar à sociedade, e por isso “retirado dela”, parece ser a resposta mais coerente. A rutura com essa lógica que hierarquiza e desumaniza só é possível pelo encontro cotidiano em espaços de trocas. Talvez a luta para que no espaço socioeducativo não perpetue a lógica punitiva seja cotidiana, até compreendermos o quanto somos vítimas desta mesma lógica punitiva e subalternizados na mesma moeda com que subalternizamos.
Paula Vargens
O curso faz parte do processo de seleção para servidor público do Departamento Geral de Ações Sócio-Educativas, vinculado à Secretaria Estadual de Educação e responsável por executar as medidas sócio-educativas de internação e semiliberdade. Técnicos profissionais são os pedagogos, psicólogos, assistentes sociais, médicos. Agentes sócio-educativos são os mais diretamente responsáveis pela disciplina e segurança da unidade.
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