Em pleno século XXI, ainda são muitas as escolas onde se “dá aula”, na ignorância de que a aula é algo obsoleto e de que há muitos outros modos de ensinar e de aprender.
Querida Alice: mais uma ave deu pretexto para uma carta de avô para neta. Mais precisamente, uma pomba. Sendo ainda mais preciso, uma pomba que vive num parque jurássico. No jurássico superior, que – para desgraça tua e de outras jovens aves indefesas – é matriz formatadora de todas as escolas. O simbólico pombo da paz, com ramo de oliveira no bico, nada tem de semelhante com a pomba desta carta, que resolveu dar soezes bicadas na escola das aves. Não se consegue entender a razão da sua sanha contra uma escola que, arrogantemente, rotula de “ineficaz, contraditória e inoperante”. Sou levado a pensar que a “única pomba feia do mundo” de que nos fala o Caeiro não será única. Porque é muito feio, minha querida neta, caluniar uma escola que nunca se visitou e da qual nada se sabe. Talvez a pomba detratora creia conhecer a escola das aves, por ter dado ouvidos a venenosas mensagens de anilhados pombos-correios, ou tenha acreditado na palração de algum papagaio. Algumas aves do jurássico superior do século XXI são assim, destrutivas; destilam ódio contra escolas diferentes. Outras há que defecam em obras de arte, corroendo a beleza com os seus dejetos, sem consciência dos danos que provocam. Compreenderás por que razão os guardiães da Notre Dame colocam veneno na ração dos pombos... A dita pomba concedeu uma entrevista a um jornal e tu leste-a. Senhora do dom dos porquês, encheste este avô de perguntas. Confesso que fiquei surpreendido com a primeira: Avô, por que é que as aulas são tão chatas? Querida neta, ainda não percebeste que a chatice é da própria natureza da aula? É deveras difícil explicar a uma jovem o sem-sentido da aula, uma prática fóssil, que deveria jazer nas prateleiras do museu da pedagogia. Desde há séculos, a aula não tem qualquer justificação teórica, ou fundamento científico. Como se poderá explicar aquilo que não tem explicação? Mas a pomba acha – ela sofre de achismo – que “a aula é um lugar muito bonito”, que “o espaço da aula é um lugar mágico”. Se ela acha que a aula é um lugar bonito e mágico, presumo que se refira à sala de aula do Harry Potter, mas essa é do domínio da ficção.
A pomba afirma que “a educação para os valores é um disparate”. E que “o professor é um transmissor de conhecimento”. Imagino que a pomba ache isso tudo no pressuposto de que as atitudes dos mestres, em sala de aula, são inócuas. O achismo não lhe permite ter consciência de que o professor não transmite aquilo que diz, que ele transmite aquilo que é – que transmite valores! A pomba do jurássico da educação também acha que “não se pode ensinar um aluno que não está na aula”. Perguntar-se-á: ensinará aqueles que dentro dela estão? E não será possível aprender sem aula?... Em que teorias, quais os estudos em que a pomba fundamenta as suas afirmações? No achismo? Do alto do seu poleiro do jurássico superior, a retrógrada pomba venera e reproduz práticas fósseis que formatam o jurássico inferior. E os professáurios que o parque jurássico da educação produz, mesmo com o pombal aberto, não se arriscam em voos divergentes – fecham-se em celas de aula, condenando sucessivas gerações de aves a uma sub-vida de bonsais humanos. Em pleno século XXI, ainda são muitas as escolas onde se “dá aula”, na ignorância de que a aula é algo obsoleto e de que há muitos outros modos de ensinar e de aprender. Mas no século XIX, num tempo em que já se questionava se seria possível ensinar a todos como se fossem um só, o Eça das Conferências do Casino escrevia: “As crianças, enfastiadas, repetem a lição, sem vontade, sem inteligência, sem estímulo. O professor domina e põe todo o tédio da sua vida na rotina do seu ensino”.
José Pacheco
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