Diz-se muito, mas não há quem abra a boca para explicar detalhes do assalto que foi infligido aos cidadãos de bem, por uma via ou por outra. Ignorância, medo e pobreza não são sinónimos de estupidez; são o alimento de algo que não augura nada de bom: o desespero.
Em 1974 todos tivemos direito, a maioria, ao nosso momento de felicidade, uma felicidade tanto mais dignificada quanto não houve lugar à caça às bruxas, desmedida e violenta, que uma opressão odiada em silêncio, por regra, gera. Houve desmandos e boatos, pequenas vinganças, saneamentos inevitáveis, houve muita confusão que serviu de véu para os cálculos que poucos puderam fazer em seu benefício. Tudo em nome da democracia. Este foi o primeiro erro, que teve como consequência para aqueles mais avisados e atentos ao futuro ou pagarem com a vida, ou serem cirurgicamente envolvidos em deleites de liberdade, ou passarem à reserva por um regime que se prometia vir a continuar em más mãos. O regime que, à luz do tempo e das evidências, agora já perdeu a legitimidade. Não houve uma voz de comando, na acepção de uma política honesta e adulta, que tenha advertido para a urgência de o país se organizar em torno de um valor que garantisse prosperidade e um futuro acautelado: o trabalho. À revelia desta mensagem, logo o Estado, agora monstro assumido, se foi alimentando às golfadas de novos agentes, dia após dia, ano após ano, favor sobre favor, inutilidade arrastando inutilidade, e dentro dele se imbuiu sem pudor que todo o sucesso de carreira tinha como consequência o alívio de responsabilidades e de eficácia, sempre com a recompensa material que nos dias de hoje tanto pesa sobre a coisa pública e de cujos danos se insiste em desviar a atenção. O Estado quer pôr as barbas de molho, mas é tarde. Não merece perder tempo a defender que este Estado é todos nós; ele vive dos nossos deveres, mas faz tábua rasa dos mais elementares direitos, como o de sufragar o poder de cidadãos que sejam úteis e dignos e o de sermos iguais perante as leis do regime que, como afirmei, perdeu a legitimidade. Como contrapartida, foram dados de bandeja a permissividade fiscal, o espectáculo, uma liberdade de expressão que deixa muito a desejar: por um lado, impossível ante a banalidade e a ignorância que pululam e transbordam dos muros das escolas, quando as há; por outro, difícil de exercer contra toda a engenharia dos acólitos que guardam esses muros onde se entrincheiram os intestinos, os braços e os cérebros do monstro que não perdeu tiques de gula. O Estado será os seus próprios tentáculos, na finança e da finança, como é símbolo de falta de coragem e visão estratégica dos seus actores, desde aquela data em que celebrámos com cravos de esperança, e que podiam ser hoje de homenagem fúnebre. E reclamo para mim a ideia de estratégia aplicada à política, num documento que redigi em Maio de 2001. O argumento de falta de visão estratégica só peca por não se aplicar aos conspiradores de 26 de Abril. Aos demais terá faltado lucidez e pulso firme. A História escreve-se enquanto se faz, mas as páginas que nos legaram os actores da descolonização ou foram rasgadas para não haver memória, ou têm demasiados erros, ou foram gravadas por punhos imberbes dos que não lutaram, nem pela sua vida, nem pelo interesse dos povos que, quer se queira, quer não, ainda falam a mesma língua. Diz-se que o país está empobrecido e endividado; eu afirmo que o país nunca saiu da pobreza que a ignorância e o medo geram. Diz-se para sermos austeros nos hábitos; eu afirmo que há uma geração responsável por muito daquilo a que assistimos que ainda distribui dividendos aos apaniguados. Diz-se muito, mas não há quem abra a boca para explicar detalhes do assalto que foi infligido aos cidadãos de bem, por uma via ou por outra. Ignorância, medo e pobreza não são sinónimos de estupidez; são o alimento de algo que não augura nada de bom: o desespero. Talvez por isto, nem que seja apenas por isto, era bom que houvesse umas vozes que, a remoque de consciência, deitassem cá para fora tudo quanto sabem. É uma questão de higiene e apelo à esperança que não podemos defraudar.
Luís Vendeirinho
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