Os zabumbas descem a Avenida / Entram na Praça da República / Atroando os ares com a batida / Das tensas peles dos bombos.
Todos os anos, no início do Verão, os cidadãos que se aplicaram (e os outros, os que não se aplicaram) no desempenho honesto das suas obrigações contratuais, isto é, os cidadãos que se esfalfaram a trabalhar para ganharem seriamente o pão deles de cada dia, começam a pensar em gozar merecidas (e imerecidas) férias. Comigo também se passa o mesmo, embora me preocupe sempre, por ser natural de terras razoavelmente frias e persistentemente chuvosas, a emergência do calor, condenado que estou pela geografia a deslocar-me até terras mais mouriscas. (Antigamente, quando se podia ler em paredes brancas um poema de Sofia ou ler calmamente numa esplanada uma página de Teixeira Gomes, o calor não incomodava tanto, obliterado pela fruição, mesmo que breve, de prazeres intelectuais.) Mas esta situação, sobretudo no terreno da psicologia, é passageira, limita-se a ser, para mim, uma espécie de tempo preambular: uma espera. Estou a preparar-me, poderei dizer que com os pés metidos na água, para o verdadeiro momento de êxtase do meu Verão, o prato forte das férias (aquelas a que, em tempos em que éramos felizes e não sabíamos, chamávamos grandes. Porque o eram...). Refiro-me, como qualquer pessoa minimamente atenta aos acontecimentos estivais já adivinhou, àquelas extraordinárias festividades que decorrem em Viana do Castelo e dão pelo nome de Festas da Senhora da Agonia, que este ano da graça de 2011 ocuparam o longo fim-de-semana de 18 a 21 de Agosto. A nossa Romaria, como os autóctones que enxameiam as ruas da cidade, concentrando-se muito especialmente na Praça da República, lhe chamam. Antes de mais, convém dizer que Viana é uma cidade de rico património arquitectónico que é não só expressão do passado como do presente: passear pelas suas ruas, vielas, praças e largos (ah, o de S. Domingos!) é um prazer, o desfrute de edifícios emblemáticos excepcionalmente belos (os solares urbanos e as igrejas, por exemplo). Pois é justamente aí, na cidade de Viana do Castelo (que tantas vezes percorri de lés a lés na infância e na primeira juventude para chegar do Largo de S. Domingos ao velho Liceu, dividido em duas alas: a feminina e a masculina), na Praça da República, que posso ser encontrado nas manhãs de sábado e domingo, para assistir, deleitado, à actuação dos zés-pereiras, dos zabumbas. É um acto pagão, vindo da época em que celtas e outros povos aparentados caminhavam, quem sabe se descalços, pelas veredas que ladeavam o Rio Lima, esse rio que os Romanos comparavam ao Letes. As paredes dos edifícios das casas da Praça, os corpos dos observadores (sobretudo o coração), estremecem sob o impacte dos sons extraídos das peles tensas por braços habituados ao cabo da enxada e da picareta: minhotos! Não há espectáculo mais intenso, fruto de um esforço que deixa os seus praticantes extenuados (são, pelo menos, três dias de pancadaria nos bombos com curtos intervalos de descanso) e a nós, espectadores, rendidos a tanta arte, porque é de arte que se trata: recordo-me de ver, há anos, o musicólogo Riu Vieira Nery, de cócoras, a tirar notas sobre o que estava a apreciar. Uma arte bárbara, é certo, que por vezes faz sangrar os pulsos envoltos em ligaduras dos zés-pereiras, mas emocionante até às lágrimas. Permitam-me que, sobre essa experiência, me auto-cite a partir de “A Parede do Céu” (Campo da Comunicação): Os zabumbas descem a Avenida / Entram na Praça da República / Atroando os ares com a batida / Das tensas peles dos bombos. // Os dois últimos vêm de Amarante / De Freixo de Cima os de amarelo / De Jazente os de vermelho brilhante. / São nove os grupos ao todo. // O sangue brota dos pulsos feridos / Quando erguem ao alto os macetes / Com o furor de deuses temidos / E a força de braços afeitos ao malho. // Das moças dilatando os corações / O estrondo faz estremecer as casas / E lembra antigas tradições / Ao povo mudo e extasiado. // Acode um frémito estranho / À tua mão no meu cotovelo / Uma promessa de amor tamanho / Sussurro-te a gritar ao ouvido.
Salvato Teles de Menezes
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