Página  >  Edições  >  N.º 99  >  Foi no século passado...

Foi no século passado...

Também não será desta vez que falarei de "aferições". Porém, se "aferição" se refere à avaliação da qualidade do sistema com vista à sua auto-regulação, então este textinho vem mesmo a propósito.

Há alguns anos, uma amiga quis conhecer por dentro uma "utopia" que, em equipa, vou ajudando a construir. Mais tarde, conhecedora da perturbação que eu semeava por tudo o que era colóquio ou congresso, lançou-me um desafio:

- Porque não vais desassossegar espÌritos para uma instituição de formação inicial de professores?

Eu, que sempre me dei mal com mudanças de ares e que nutro (ao que diz o meu amigo LuÌs) alguma reserva relativamente à academia, acabei por aceder ao repto. Confesso tê-lo feito por curiosidade, apenas "à experiência" e desconfiado de que não iria manter-me por lá por muito tempo. Bem me tramei. Tomei-lhe o gosto e pude dar largas à minha irremediável tendência de (fraternalmente) provocar.

A primeira surpresa foi verificar que a tese do Vicente se aplica a todas as gerações. Aquelas que por mim passaram nos últimos anos não são mais rascas que a minha geração o foi. Havia de tudo...

Aquelas jovens almas, naquele engano de alma ledo e cego que os primeiros dias de docência não deixam durar muito, aderiam entusiasticamente à ideia de o Freinet, o Dewey, o Rogers, ou Freire, não serem apenas matéria a empinar para os exames ou múmias dissecadas em dissertações.

Prudente perante o seu entusiasmo, já só lhes pedia que, às primeiras contrariedades no exercÌcio da profissão, não transformassem o idealismo em pragmatismo e o pragmatismo em cinismo. Dizia-lhes que, mal pressentissem que poderiam vir a refugiar-se no "dar aulas e manter a disciplina", mudassem logo de profissão. Só desse modo preservariam a sua sanidade mental e a das crianças e jovens que lhes coubessem em sorte educar.

Em sucessivas fornadas, concluÌdo o curso, lá foram em busca do projecto do seu sonho. Foram muitos os chamados e escassos os escolhidos. Dos que se perderam em opções fáceis não rezará a história, nem eu... Somente lamento o tempo perdido e desejo que, um qualquer dia, venham a encontrar-se. Aqueles a quem os acasos da vida conferiram coerência defrontaram obstáculos e reveses, que as escolas não são bem aquilo que vem nos livros.

Passei a receber telefonemas, cartas e, desde há algum tempo, mensagens em correio electrónico. Quase todas as missivas me falavam dos seus primeiros dias como professores, outras que eram restos de uma esperança dissolvida no ácido da vida real, outras ainda pediam conselho, davam notÌcia de sucessos e insucessos.

O "X" é um dos muitos jovens que se dispôs a deixar-se interrogar e que também teve acesso à "utopia" e a viveu por dentro dias a fio. É um dos meus ex-alunos que, mais assiduamente, dá a conhecer as suas primeiras experiências como professor. Em finais do século passado, o "X" escreveu:

"Pois é, tudo tem uma razão de ser e mesmo a minha demora em responder tem razão de ser. As coisas aqui estão muito piores (...) infelizmente, continua-se a enfardar forte e feio nos miúdos. A V... - uma colega nossa que está a dar apoio - tem que olhar várias vezes para o lado porque dentro das salas onde dá apoio os profes batem nos miúdos. Temos que continuar um bocado discretos para não termos problemas no final do ano.

Toda a gente é muito simpática mas só consegue ver um tipo de trabalho à frente dos olhos: aquele que dá pouco trabalho (pensam eles). Logo no inÌcio do ano pude verificar algumas coisas que me deixaram muito desagradado. Os miúdos sentam-se todos virados para a frente em carteiras individuais e começa-se o ano com três semanas de grafismos. Não interessa se existem miúdos repetentes dentro da sala de aula. Sugeri que se fizesse trabalho diferenciado e a resposta foi: "Nem pense numa coisa dessas. Faça o mesmo trabalho com todos."

Falo em criar uma associação de pais: "Nem pense nisso! Na escola do M... deu muito mau resultado. Fazemos uma reunião com eles no inÌcio do ano, faz-se duas ou três festinhas e chega.".

Falo em marcar reuniões com os pais todos os meses em que não é preciso mais ninguém estar presente: "Não dá muito jeito porque a Dona F... é que fica com a chave..." entre outras desculpas.

Outra que também é muita boa é logo em Setembro dizerem: "Lá para o Natal coloca os alunos que precisam de apoio numa lista (...) porque assim depois tem desculpa para os chumbar no final do ano".

(...) o que custa mais é mesmo o trabalho de sala de aula onde nada se pode fazer de diferente (...) o que fazer então? Tendo em conta que todos os princÌpios pedagógicos que adquiri ao longo destes últimos anos contrariam frontalmente tudo aquilo que era obrigado a fazer, decidi vir embora.

"Ter a lucidez para dar conta e vir-me embora", lembra-se? O ânimo com que ia para as aulas era muito pouco e penso sinceramente que para trabalhar deste modo existem muitas pessoas com mais vontade e facilidade do que eu para lidar com esta situação. Sei que se calhar optei pela solução mais simples e que se calhar deveria ter lutado mais. Ainda tentei levantar os assuntos de várias formas mas o resultado foi sempre o mesmo.(...) Por outro lado, o que se ganha é tão pouco que se torna relativamente fácil conseguir o mesmo rendimento de outras fontes.

Quando falou comigo já eu tinha tomado a decisão e por isso é que fiquei meio engasgado (...)

E a carta continua no mesmo tom. Foi o "X" que veio embora, foi o "X" que teve de desistir, quem optou pela "solução mais simples".

Quando a mediocridade se sobrepõe à generosidade, a indignação é coisa pouca. Sinto um intenso desejo de vingança. Sempre que me confronto com a amargura da desistência, do insucesso de um ex-aluno, sinto-me o mais miserável dos professores. O insucesso de um jovem e de um professor jovem é algo que me custa a digerir. Tanto mais que me assalta algum sentimento de culpa. ContribuÌ para a tragédia. Não fiz tudo o que devia. Falhei.

Por este e por outros bons motivos venho defendendo ser inadiável criar condições para que aqueles que buscam fazer uma escola diferente, mais fraterna, mais digna, a possam concretizar. Alguma coisa terá de mudar nas escolas, para que ninguém por ignorância, preguiça, ou acomodação, ouse "não querer" e possa impedir os que querem.

Quantos mais verdadeiros professores terão de desistir? Quantos mais verdadeiros projectos serão liquidados com a chegada à escola de um "professor não sensibilizado para o trabalho cooperativo"?

Os professores envolvidos em projectos (que não sejam apenas de papel) não procuram a obtenção de privilégios. Bem pelo contrário: para viabilizarem a formação de equipas de projecto, muitos que conheço fizeram opções de vida que acarretaram prejuízos para a sua vida pessoal e profissional. Poderei prová-lo. Muitos outros, por via de uma legislação obsoleta viram ser-lhe negado o direito a participar (como diria o saudoso Paulo Freire) nos projectos dos seus sonhos, e já se aposentaram. Viram a burocracia (e, por vezes, as leis) aliar-se aos que "não querem"... e têm o "direito de não querer" procurar e cumprir o melhor para os seus alunos.

Em muitos casos, o carácter vitalício das colocações agiu como óbice à mudança, por permitir a certos professores "vitalÌcios" a recusa da cooperação com os que buscavam novos e melhores caminhos para os descaminhos da Educação. Vi o trabalho de equipas de professores construÌdo ao longo de muitos anos ser destruÌdo em escassos dias por outros que, por não estarem atentos à necessidade de re-elaboração da sua cultura pessoal e profissional, se mantinham cativos de uma cultura de funcionário público. Integro um sindicato que me habituei a ver democrático e plural. Mas se, até agora, ninguém explicou o porquê de algumas tomadas de posição relativamente ao documento-proposta de alteração das regras de "recrutamento de docentes", o silêncio não me diz nada.

O discurso sindical é pródigo na reprodução de conceitos como cooperação, equipa de trabalho, desenvolvimento profissional... E a prática?

As posições assumidas perante decisıes de polÌtica educativa irão no sentido de uma nova cultura profissional? Se, relativamente à medida 12, é reconhecido o princÌpio de que "a estabilidade das escolas assenta na estabilidade do seu corpo docente", porque se recusa o princÌpio da "estabilidade plurianual"? Relativamente ao ponto 2 dos princÌpios, porque se aceita somente "outras modalidades de concurso" no caso das escolas especializadas de ensino artÌstico ou profissional e apenas para o recrutamento dos docentes das áreas especializadas"? A expressão musical, a fÌsico-motora, ou a dramática - de que as escolas (com projecto!) continuam carenciadas - não serão "áreas especializadas"? Não serão "especializadas" áreas como o português ou a matemática?...

Na prática e em contradição com o discurso, rejeitar-se-á a ideia de que as escolas poderão constituir-se em espaços colectivos de criação de novas realidades? Presumir-se-á que, por força de atavismos e vÌcios, todas as escolas devem ser "iguais à face da lei"? Ainda ninguém percebeu onde nos conduziu essa pretensa "igualdade"? Não terá sido essa "igualdade" - plasmada num sistema de colocações pretensamente cego e justo - responsável por muitos dos defeitos apontados ao "sistema"?

Urge instituir outras vias de concurso e colocação, uma das quais permita que a selecção dos candidatos seja feita em função da sua adesão a um projecto. E a estabilidade requerida por verdadeiros projectos poderia ser garantida pelo carácter plurianual (talvez por um perÌodo de três ou quatro anos) das colocações e por uma efectiva avaliação de desempenho dos professores (que, até prova em contrário, considero ser ainda virtual...).

A revisão (em curso) do "sistema de recrutamento de docentes" será mais uma oportunidade perdida para a afirmação da qualidade da escola pública? De que lado estão as estruturas representativas dos professores? Farão como Pilatos, deixando tudo como está? Os nichos de inovação e mudança, construÌdos à custa da dedicação e sacrifÌcio de alguns professores vão permanecer dependentes de precários destacamentos? As escolas continuarão expostas às vicissitudes de concursos de colocação aleatória e vitalícia, que em nada se distinguem de outro qualquer concurso para funcionário público?

E quem responderá, mais tarde, pelo crime de omissão?

José Pacheco
Escola da Ponte - Vila das Aves

  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 99
Ano 10, Fevereiro 2001

Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo