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José Pacheco em Entrevista a "a Página" ( segmento 1 de 2 )

"Sou um professor do Primeiro Ciclo...
Um professor do Ensino Primário"

"A história das reformas é muito triste. Os preâmbulos dariam um antologia"...

É um hábito editorial de «a Página» introduzir os entrevistados com uma curta biografia. Nesta edição, o entrevistado é da casa [autor da rubrica "do primário"]. Dá pelo nome de José Pacheco e apresenta-se assim: "O essencial é dizer que sou professor do primeiro ciclo. Ou do ensino primário, como eu gosto de dizer provocatoriamente. Tive a sorte de trabalhar com uma equipa de professores e o resto está contado naquilo que a gente vê por aí [Escola da Ponte, Vila das Aves], se é que isso tem importância...".

Utilizas muito frequentemente a designação ?primário?. Porquê?

Para haver um primeiro ciclo teria de haver os outros ciclos de um Básico que não existe como tal.
Nós, professores, vivemos e alimentamos equívocos. O edifício do Ensino Básico, construído há uns anos, não passa de uma mera concepção da Lei; na prática, não existe. Por razões diversas, entre as quais a abissal diferença de culturas, eu costumo dizer que, a montante do sistema educativo, há um apêndice incómodo, um mundo à parte que é o 1º Ciclo ? e já nem falo na Educação de Infância. Depois há o resto, com lógicas completamente diferentes.
E há equívocos em cima de equívocos, como manter a ideia de que o 1º Ciclo, ou o Primário, deve ser leccionado em regime de monodocência, coadjuvada ou não em áreas de expressão. Há, de facto, um conjunto de equívocos, ou de elementos do senso comum, que fazem com que o 1º Ciclo seja um caso à parte; por isso lhe chamo Primário.

Consideras que a monodocência é, por si só, definidora da ausência de estatuto?

Não, mas ajuda a definir o contorno.
Eu não faço questão de que se mantenha, ou não, o regime da monodocência, porque isso é desviar a atenção do fundamental. O problema é que nunca ninguém me conseguiu explicar porque é que se consagra na lei o regime da monodocência.
A ideia de Ensino Básico que temos aqui na escola corresponde àquilo que esperamos poder construir dentro de dois anos ? um projecto de educação básica onde cabem professores com diferentes especializações mas que trabalham todos com todos os alunos. Aí, sim, haverá um todo sequencial e complementar que hoje não existe.

Preconizas a existência de equipas educativas: por favorecerem a transição de ciclo ou pela validade intrínseca do trabalho dessas equipas?

Não é para assegurar a transição entre ciclos, mas para acabar com eles, porque o Básico é um todo. Aliás, também nunca ninguém me explicou porque é que há ciclos, porque é que se divide os ciclos em segmentos chamados anos de escolaridade ou porque é que há a padronização das aulas em 50 ou 90 minutos...
Penso que a questão deve ser colocada de maneira diferente. Posso estar a laborar em lugares-comuns, mas o que nós sabemos é o que não deve ser feito no sentido de arranjar um Básico ?comme il faut?. Quando digo que não entendo porque é que há transição entre ciclos ? porque não há, não pode haver uma ideia de ciclo, tem de haver uma ideia de educação básica, de acesso e de sucesso para todos ?, estou a pensar em projectos de escola, em autonomia...; penso nesses lugares-comuns que a gente vê por aí tão maltratados.

Do que também fala a reorganização curricular do Ensino Básico proposta pelo Ministério da Educação...

Fala, mas não é novo. As ideias são recorrentes.
Eu já vivi três tentativas de reorganização curricular ? a de Roberto Carneiro chamou-se mesmo reforma ? e o que vejo nesta proposta é o que via nas anteriores: os preâmbulos são perfeitos, autênticas obras de arte da literatura; a partir daí, as coisas complicam-se, porque o discurso é repetido, recuperado a cada 10 anos.
Há dias, quando a secretária de Estado apresentou a proposta ao Conselho Nacional de Educação, eu reagi no meu mau estilo e a única coisa de que me lembrei foi de dizer de memória um texto que repetia palavras da senhora [Ana Benavente]. Fundamentalmente, o que ela dizia era que a proposta partia da ideia de gestão flexível do currículo e das experiências que estão no terreno, que apelava à diversificação dos processos, à preocupação pela educação para a cidadania, a acabar com as aulas transmissivas, de ensino livresco... Então eu citei-lhe algo que integra um documento do Ministério da Educação ? não deste, mas de outro. Esse despacho diz que se deve evitar a tendência para um ensino meramente livresco; que deve atender-se à diversidade e diversificar os processos de ensino-aprendizagem; que deve ter-se em conta não apenas o indivíduo, mas o cidadão. Depois disse-lhe a data ? Setembro de 1975 ? e acho que a senhora ficou muito zangada comigo.
Penso que é isto que está em causa. A história das reformas é muito triste. Os preâmbulos dariam uma bela antologia. Mas depois falta, fundamentalmente, definir a metodologia e, sobretudo, prever uma larga margem de opção que as prescrições normativas muitas vezes não contemplam. Porque é que agora ? e só tomo isto como anedota ? as aulas vão ser de 90 minutos, em vez de 50? Quando se cai nestes excessos, nestas padronizações, está-se a tentar dizer aos professores que com 90 minutos já faz reorganização curricular. É apenas isso que a nossa cultura pessoal e profissional vai assimilar, por muito doloroso que nos seja admiti-lo. Resumindo, há um preâmbulo que qualquer cientista da educação subscreveria e depois há o resto, pleno de ambiguidades e de equívocos, como o estudo acompanhado e a área de projecto, que não são mais do que cristalizações de alguma coisa que poderá ter resultado em determinado local, mas que não pode ser generalizado.

O que é que falta, então, nesta proposta, para que a consideres um bom documento, de facto?

Falando mais pelo lado da prática, embora considere que teoria e prática são indissociáveis, eu diria que há várias condições, que, aliás, tive oportunidade de transmitir à senhora secretária de Estado em 1997. Ela convidou várias pessoas a irem à Secretaria de Estado, e eu fui ? aliás, note-se que eu estou sempre numa posição colaborativa... Na altura, na minha ingenuidade, fui ditando algumas ideias. Fundamentalmente, coisas como estas: que não se deveria falar tanto em autonomia, mas permitir que a autonomia acontecesse nas escolas ? portanto, não se trata deste tipo de autonomia oferecida, que, no fundo, pode ser uma armadilha filtrada pela nossa cultura pessoal e profissional (no 1º Ciclo está a acontecer a criação de micro-delegações escolares, e isso preocupa-me); que se deveriam estudar os processos de inovação ? felizmente há muitos, embora nem todos sejam todos conhecidos, e deveriam sê-lo ?, avaliá-los, para ver se há inovação ou não, e depois não generalizar nem disseminar, mas pôr à disposição; que se deveria criar redes entre esses projectos e outros que quisessem participar; por outro lado, julgo que deveria ser criada uma instância de especialistas em currículo ? e não de teóricos do currículo ? que pudesse acompanhar, avaliar e criar suportes de inovação.
Com isto, evitar-se-ia a publicação de mais normativos; bastaria cumprir aquilo que está no 286/89 e no 98-A/92. Se isto fosse assegurado, julgo que iríamos longe, mas, neste momento, tenho receio que se perca mais uma oportunidade.

Em todo o caso, o texto que se conhece [documento de trabalho intitulado "Proposta de Reorganização Curricular do Ensino Básico", distribuído em Março pelo Departamento de Educação Básica] não deverá ser definitivo...

Não, o Conselho Nacional de Educação esteve a discuti-lo na semana passada [entrevista realizada a 19 de Abril], e ficamos de elaborar um parecer e apresentar recomendações.
O que nos foi dito é que iria alargar-se o debate e a participação pública. Aliás, eu mesmo pedi que não houvesse a preocupação de mostrar serviço, mas de alargar a discussão. Porque, no fundo, quando se projecta um documento destes para a discussão pública é para legitimar algumas coisas que já estão praticamente decididas, e eu penso que isso é perverso. Julgo que, muitas vezes, é isso que provoca que as alterações sejam tão periféricas que não afectam a organização.
O que me preocupa, também, é que aquilo que consta como orientações na proposta, e que são bastante claras, sejam propostas dos professores, de que o ministério se apoderou a partir da experiência da gestão flexível e da reflexão participada. Isto é uma armadilha perfeita; é por isso que se ouve dizer que, se não acontecer nada, a responsabilidade será dos professores.

Aliás, a responsabilização dos professores parece ser uma tónica no documento de trabalho...

Julgo que foi inteligente, da parte do ministério. Mas julgo, também, que os professores andaram distraídos. Quando são eles ? porque foram ? a propor a invenção dos 90 minutos... É este tipo de propostas que o ministério toma como suas e devolve aos professores, criando as condições para a reorganização curricular. É a maior das perversões, e eu não quero alinhar.
Eu tenho um azar muito grande. Em 1978, escrevi alguma coisa sobre isto e chamaram-me o profeta da desgraça, porque aquilo que eu disse é o que estou a dizer agora, passados 22 anos ?não havia condições; eu conhecia perfeitamente o grupo profissional a que me orgulho de pertencer. Em 1989, voltei a fazer o mesmo. Quando fui para a formação de formadores que se encarregariam de fazer a formação para os novos programas e para a reforma curricular, eu perguntava a quem me vinha servir a Área-Escola, porque é que ela tinha 95 a 110 minutos, porque é que não era o tempo todo de escola? Ninguém me soube explicar, e então eu disse que essa Área-Escola que descobriram ? o pulmão da reforma, como diria depois o Albano Estrela ? ia arranjar um cancro do qual ninguém perceberia a etiologia.
Eu tinha razão, e vou ter razão novamente. Isto de ter razão é muito relativo, mas a verdade é que aquilo que eu e alguns outros temos dito acaba por se concretizar. E eu considero que, desta vez, estamos no mesmo caminho. Infelizmente, porque a proposta é bem elaborada, pertinente, generosa ? não discuto isso. A questão, como já disse, está no resto...

Será abusivo perguntar se o documento do ministério aponta para uma realidade mais próxima do vosso projecto do que da generalidade das outras escolas, nomeadamente do 1º Ciclo?

Se olharmos para o texto do 286/89 ? e não quero que isto pareça presunção ?, aquilo que nós fazemos é o que qualquer pessoa deve fazer. E não falo de missionarismo, porque não gosto de professores missionários. Mas também não gosto de professores demissionários...
Dizia que fazemos o que qualquer um deve fazer. Mas já o fazíamos antes da lei. Quando a Teresa Vasconcelos estava no DEB, chegou a dizer que esta escola antecipou a lei; e até ficou fora da lei, nomeadamente sem a monodocência ? em 1986, já estávamos há 10 anos sem monodocência e veio a Lei de Bases para nos pôr fora da lei.
Esta escola é um acaso que, por acaso, coincide com o espírito da lei. Temo é que comece a ser modelo, porque nenhuma escola deve ser modelo. Pode é ser referência.

E o que é que vocês fazem aqui?

O que já se fazia em 1976 e que em 89 surge como princípios gerais, também subscritos nesta proposta: que as aprendizagens devem ser significativas, integradoras, diversificadas, activas e socializadoras; que a avaliação deve ser continua e sistemática, de cariz formativo. É isso que fazemos aqui, à nossa maneira. Nunca ninguém nos apresentou propostas Fizemo-lo, pura e simplesmente, porque temos um projecto e respondemos por ele.
Para isso, assumimos a nossa autonomia. O que passou, por exemplo, por acabar com a ideia da monodocência; pela decisão de acabar com turmas, porque a homogeneidade só existe em abstracto; acabar com os planos para o aluno médio, porque é um mito; acabar com o trabalho isolado dos professores e passar para um trabalho em equipa; acabar com a divisão em anos de escolaridade, que é outra abstracção, porque nenhum aluno precisa de um ano para alcançar determinado conjunto de objectivos definidos nesse ano de escolaridade. Acabamos com os testes, porque o teste é perder tempo e paciência; acabamos com o manual igual para todos... Acabamos com isto tudo e criamos outras coisas. O exercício da autonomia também é isto.

Quando os vossos alunos saem para o 2º Ciclo, como é que reagem à transição? Têm indicadores do percurso que eles realizam? Há alguma diferença relativamente aos alunos de outras escolas?

Eles são bastante maltratados, mas como aqui cultivam a autonomia e a solidariedade, passam-na para o 2º Ciclo e conseguem adaptar-se, embora a escola de 2º Ciclo não responda às características deles ? aqui, eles desenvolvem capacidades de pesquisa, de auto-planificação e auto-avaliação, de participação em assembleia, de decisão, de gestão autónoma de tempos e espaços, que lá não vão utilizar.
Mas como já andamos nisto há quase 25 anos, daqui a dois anos teremos cá o 2º Ciclo, acaba-se esse drama. Porque aquilo que está a acontecer no Básico, e há bocadinho não completei, são transições traumáticas, não entre ciclos, mas entre comunidades umbiguistas; Primário e 2º Ciclo são segmentos estanques, cada um fechado dentro de si, e essas rupturas traumáticas acontecem numa idade bastante difícil para a construção da personalidade.

O que provoca algum desajustamento, até do ponto de vista emocional...

Muito. Mas eles reequilibram-se, e até conseguem bons desempenhos de pauta, embora sejam os menos importantes. Ou seja, em termos de rendimento académico ou cognitivo, não diferem muito dos outros. O que não têm é resposta ao que, atitudinalmente, são; mas safam-se.

Voltando ao projecto desta escola ? 25 anos passados, que avaliação fazem do vosso trabalho? O que identificam como mais positivo e quais as principais falhas que detectam no vosso percurso? E relativamente ao envolvimento da comunidade?

Como qualquer projecto, isto é uma obra humana, cheia de imperfeições, e os maiores obstáculos são os traços indeléveis da nossa cultura pessoal e profissional, que jogam contra nós. Para abreviar, diria que há uma forte penetração na comunidade, o que se reflecte nas associações culturais, desportivas e recreativas, no voluntariado social, nas autarquias, nos partidos políticos, etc. Aí, há uma grande participação de ex-alunos. E também há uma grande reacção por parte da comunidade: há os que apoiam totalmente o nosso projecto, e penso que serão a grande maioria, e há os críticos de serviço, que também fazem falta, porque nos apontam defeitos que, por vezes, não vislumbramos.
Quanto ao que de bom tem resultado, os ex-alunos falam por si. Eu não devo enaltecer o que quer que seja, porque, como já disse, nós fazemos apenas aquilo que deve ser feito. Posso é dar os traços gerais da pessoa que aqui é educada: uma grande ligação à escola; uma grande ligação entre eles ? a solidariedade transforma-se em vínculos muito intensos, de tal forma que eles continuam a encontrar-se; e, sobretudo, aqui não se forma apenas para a cidadania ? forma-se na cidadania. Todas as semanas, a assembleia é exemplo disso. Quem nos visita ? e temos dezenas de visitas por semana ? assiste à assembleia e fica a perceber porque é que os alunos são como são.
Penso que é este o traço mais marcante ? um grande sentido de participação comunitária e um grande sentido de responsabilidade pelos actos colectivos. Isto é líquido. Quanto ao que a Escola tradicionalmente persegue, que é ensinar a ler, escrever e contar, eles aprendem tanto ou mais, e sobretudo com significado; trabalham sempre em torno de projectos, de intenções de projectos que eles definem a partir de problemas.
É esta a essência do nosso projecto. Sobretudo, um trabalho de equipa, em que os professores trabalham todos com todos e comunicam a solidariedade. A cultura, o éthos da escola, vive disso.

Como é que se consegue manter de pé, durante tantos anos, um projecto que nasceu contra a corrente ? Que tipo de apoios é que têm?

Nunca tivemos nem um centavo, mas todo o 1º Ciclo nunca teve. Até nisso é diferente. O problema não é de recursos materiais ? e lá estou eu a ser um pouco contrário ao discurso oficial. Eu costumo perguntar: e quando estiverem reunidas todas as condições materiais, qual vai ser a desculpa para não se fazer mudanças? É uma pergunta dura, rude, mas fraterna. Julgo que os professores merecem que a gente lhes faça as perguntas directas...
O maior obstáculo, em determinada altura, foi a administração educativa. Agora não, é ao contrário. Desde há uns anos ? lá estou a ser dissonante, mas é assim, tem de se dizer ?, tem sido grande o apoio e a compreensão por parte da Direcção Regional [de Educação do Norte]. Mas isso não nos compromete perante ninguém; nós continuamos a exercer a nossa autonomia.
Portanto, o problema não é a carência de recursos materiais ? mas também é, porque é uma injustiça privar o 1º Ciclo daquilo que os outros têm. No entanto, a questão põe-se mais ao nível da estabilidade dos professores, e neste capítulo volto a ser dissonante. Defendo que se dê lugar a duas vias de concurso. Já discuti muito isto em termos sindicais, e soube respeitar a maioria e calar-me na altura própria, quando se discutia o Estatuto da Carreira Docente e a revisão. Calei-me, porque senti que estava em minoria e que poderia complicar, mas estou num sindicato democrático [Sindicato dos Professores do Norte] e julgo que é altura de voltar à questão.
Há pouco, quando falava das condições, esqueci-me desta. É que, para haver estabilidade e liderança, tem de haver estabilidade em termos de concurso e colocação. Por outro lado ? e isto pode parecer um pouco exagerado para algumas pessoas ? os professores têm de ter o direito de se escolher entre si, de apresentar um projecto coerente e de serem avaliados por esse projecto. E para isso tem de haver contratações plurianuais, não para escolas mais perto de casa, mas para escolas com projecto.
O que importa não é o edifício, mas o projecto. E não estou a falar de projectos no papel, nem da tendência para o amiguismo; estou a falar da honestidade, da inteligência e do sentido profissional dos professores. Se houvesse menos preocupação em prescrever condições, e mais preocupação em criar condições desta natureza, talvez as coisas acontecessem.

Já agora, qual é a média etária da vossa equipa?

Os antigos andam à volta dos 50 anos. Os novos, que nos vêm substituir, rondam os 30.

Quer dizer que já têm a sucessão assegurada?

Já temos uma segunda equipa. Também passa por aí o apoio da Direcção Regional de que falava há pouco. Mas nós não queremos uma situação de excepção, nem a situação precária do destacamento, porque é sempre dependente de alguém. Queremos é que nos outorguem o direito de estarmos juntos pelo menos 4 anos, renovados ou não mediante a avaliação dos resultados que seja feita.

Portanto, a vossa proposta de contratação é por 4 anos?

Quatro anos é o mínimo. Sabemos que é assim, porque a equipa que veio para nos substituir está cá há dois anos e só agora é que vemos algum fruto deste contágio, deste trabalho em comum. Porque as mudanças são muito lentas.
As pessoas que vieram são óptimos professores ? como são todos os professores; por vezes, são é subestimados ?, mas vinham com outras representações, outras práticas, outras perspectivas. Foi preciso respeitar essas representações e dar-lhes tempo para perceberem que havia outras lógicas.

Como é que foi constituída a equipa?

Por fidelidade aos princípios do projecto. Eu não seria capaz de estar numa escola onde estivesse a trabalhar sozinho, onde os valores de matriz do projecto não fossem aqueles que eu cultivo. E não me venham com histórias de que não tem de se inculcar valores. Isso é uma treta. Mesmo sem projectos escritos, os professores estão continuamente a inculcar valores, ainda que não se apercebam disso.
O que nós aqui dizemos é que estamos em consonância com os dois valores de matriz do nosso projecto, que são a autonomia ? o primado da liberdade ? e a solidariedade. Dentro disto, toda a escola se reorganiza, e se eu, professor, estou de acordo com isso, farei tudo, com os outros professores, para que as nossas crianças sejam pessoas mais autónomas, mais responsáveis e mais solidárias. E no meio disto, elas aprendem o resto.
Agora, se cai aqui um professor que não está de acordo ? e tem todo o direito de não estar ?, tem duas atitudes possíveis: ou tenta perceber o que isto é, e até pode ser que uma opinião diferente ajude a melhorar o projecto; ou então, como infelizmente já aconteceu, põem-se à margem, dizem que não estão para isto, e complicam... Isto acontece talvez porque os concursos de colocação de professores em nada diferem de concursos para qualquer funcionário público. Eu não gosto muito de falar sobre isto, porque são questões fratricidas em termos profissionais, mas deu-nos para reflectir e chegar à conclusão de que tem de haver também ? também ? concursos para projectos. Porque se um professor quiser ir com outros para determinada escola, para desenvolver determinado projecto, deve ter esse direito. Até porque não estão a pedir nada para eles; estão a tentar fazer o melhor para as crianças.

É para isso que as escolas servem...

Eu gostaria de sublinhar uma coisa. Há sempre a tendência para considerar que os professores são reprodutores de prescrições; que não são capazes de produzir o que quer que seja. E há um senhor, que para nós tem muita importância, e é um referente fundamental neste projecto, que se chama Adolfo Lima. No princípio do século, ele dizia que uma reforma radical ? e eu estou a falar da reforma aqui na escola, que é radical, como já vimos, no sentido em que muda toda a organização ? talvez seja impossível, mas uma reforma não radical é inútil. É inútil, inconsequente, inócua. Aliás, para nossa desgraça, a única reforma implantada com êxito no terreno foi a do Carneiro Pacheco, que ainda aí está... dentro de cada um de nós.

Virando a página, que balanço fazes da tua experiência enquanto membro do Conselho Nacional de Educação?

É uma situação muito incómoda, sobretudo porque não gosto de me representar a mim próprio, e é essa a sensação que tenho. Os colegas que lá estão são quase todos professores do Ensino Superior. Apenas dois são eleitos directamente pelos seus pares: eu ? até nisto o Ensino Básico não existe, porque eu fui eleito pela Educação de Infância e pelo 1º Ciclo ? e o colega dos 2º/3º ciclos e Secundário.
A sensação tem muitos cambiantes. Eu observo que toda aquela gente tem uma noção do Ensino Básico extremamente difusa e, inevitavelmente, subjectiva. Digamos que aqueles que mais se aproximam da realidade são um Almeida e Costa, um Albano Estrela ? são pessoas que, de um modo indirecto, entendem a realidade do Básico. E aquilo que eu vi durante a discussão da proposta de reorganização curricular é que ninguém foi ao cerne da questão, a não ser eu e outra pessoa que não importa agora dizer quem é. E isso cria-me algum incómodo, repito.
O outro incómodo, como disse, é não haver possibilidade de juntar os milhares de educadores e professores do 1º Ciclo. O que eu faço é um apelo muito grande, por exemplo, ao Departamento de Educação Básica do meu sindicato, a grupos de professores ou a associações profissionais para discutir com eles ? quando é possível, quando há tempo ? as propostas que me apresentam no Conselho; para levar não a minha opinião, mas, pelo menos, a de algumas dezenas ou centenas de professores. Esta situação é extremamente constrangedora.
Apesar disso, julgo que a existência do Conselho Nacional de Educação faz sentido. Muitas das recomendações e pareceres ajudaram a melhorar alguns documentos; outros, como o da reforma curricular do Secundário, pura e simplesmente passam à margem. Agora que o Secundário está arrumado, vamos ver se o Básico ganha identidade. É isso que eu gostaria de fazer este ano no Conselho Nacional. Mas é uma incomodidade muito grande. Não porque eu seja cientificamente mais habilitado ? bem pelo contrário, as pessoas que lá estão são muito superiores, certamente, no conhecimento que têm da teoria ?, mas não é impunemente que se passam quase 30 anos neste ?bricolage? de inovação. No fundo, é disso que se trata. E de perceber que muitas das coisas que estão na teoria são teorizações de teorias, redundâncias teóricas que apenas servem, muitas vezes, para legitimar o discurso da não mudança.
É isto que, às vezes, me aborrece, mas sinto-me bem com aquela gente. Infelizmente, sinto-me bem ? porque gosto de estar sempre numa posição crítica, e muitas vezes não tenho coragem para ir mais longe...

Antes de terminar, permite-me retomar um ponto que referiste atrás. Dizias que em qualquer projecto o maior obstáculo é a cultura pessoal e profissional dos professores. Considerando a tua experiência de formador, qual é o perfil de professor que está a ser forjado?

Eu fui até à Escola Superior de Educação do Porto para ver como era. Convidaram-me e estarei lá enquanto gostar de estar.; Quando me incomodarem, arranjam um professor para me substituir e eu venho-me logo embora, porque não sou professor da ESE nem do Superior, sou professor primário. Mas fui até lá, e tomei consciência directa daquilo que se passa. Digamos que há lá professores com uma sólida preparação científica. Sem dúvida. O problema começa na prática pedagógica, e melhor fora que os alunos da formação inicial não a tivessem; o problema está nos estágios, e melhor fora que não os fizessem.
Quanto à formação contínua, continua a ser uma mentira sustentada por 20 e tal milhões de contos. Há bons exemplos, mas a maior parte das acções são aquilo que a gente sabe ? e agora diria coisas violentas, que já escrevi...
Ficam as reticências. Se algum dia for preciso, escreverei alguma coisa à frente.

Então agora, mesmo para terminar...

Aqui há dias pediram-me um mote para um encontro que se vai realizar brevemente e aquilo que eu sintetizei foi: em vez de procurarmos respostas práticas ou prescrições, pensemos no que podemos fazer da Escola com aquilo que fizemos dela.
Para isso, é preciso fazer muitas perguntas e ter mais interrogações do que certezas. É por isso que eu não digo que não deve haver manuais, que não deve haver classes, que não deve... Pergunto é porque é que há. Se um professor ouvir esta pergunta e reflectir sobre ela, certamente encontrará respostas para si próprio.

entrevista conduzida por António Baldaia


  
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Edição:

N.º 91
Ano 9, Maio 2000

Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

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