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Continua num Próximo Número

Após efectuar a avaliação de dezanove escolas do ensino secundário, a IGE "descobriu" que as escolas relacionavam o sucesso com a existência de "lotes" de "bons alunos" ou a existência de "explicações" e que os professores imputavam o insucesso dos alunos à sua origem sociocultural, à sua falta de preparação no ensino básico, ou... à falta de formação dos professores! Posto isto, recomendou que a avaliação dos alunos passasse a ser sistemática e incidisse, não apenas na componente cognitiva, mas também nas componentes ligadas às atitudes, valores, capacidades. Olha a novidade!...
A IGE confirmou o óbvio, isto é, que predomina o método expositivo, a disposição dos alunos em filas, voltados para o quadro, estando a intervenção dos alunos limitada à resposta a questões colocadas pelo professor. Refere ainda a IGE que, no decurso da avaliação, "não foi visível a existências de estratégias específicas para potenciar a aprendizagem dos alunos com ritmos mais lentos" (dito em linguagem dura e pura, quem não acompanhar o ritmo do professor, que se desenrasque ou pague a um explicador). Conclui que as práticas de ensino vigentes beneficiam "alunos que acompanham, sem grandes dificuldades, ritmos intensos de leccionação" e que a preocupação maior é a de preparar os alunos para fazer exames..
Aqui chegado, julgo ser do mais elementar bom senso tentar desanuviar o texto. A intuição diz-me que ainda poderá acabar mal, se não recorrer a uma imediata e expedita saída pelo lado do contar histórias.

Mais duas histórias, para variar

I - Naquele tempo, já não havia necessidade de ir até à sede do concelho fazer exame da quarta classe. Mas, como sabemos, os hábitos têm fundas raízes e ainda havia uma outra sorte de provas a prestar em cada escola.
Eram dois os professores que "davam a quarta". Um era moço e inexperiente. A outra era mulher na casa dos sessenta de idade e levava de vantagem quarenta anos de brilhantes avaliações de desempenho que lhe conferiam fama de boa professora. Fazia alarde da auréola e gabava-se de que qualquer aluno que levasse a exame só poderia de lá sair aprovado com distinção.
De tão rigorosa e cumpridora, também seguia à risca a percentagem estabelecida de reprovações. Em consonância com os ideólogos do regime há pouco deposto, postulava que "nem todos podiam dar doutores". E, do alto da experiência, dava como exemplo o caso do Toino Bica que, já entrado nos doze, passava as aulas a dormitar na "fila dos burros".
Pelo final de Junho, a professora já tinha o exame preparado, mas teve para com o colega uma gentileza inédita, talvez inspirada pelo clima democrático em que ainda se vivia: "O colega não quer acrescentar qualquer coisa à prova?"
O colega quis. O poema do Torga que encimava o teste estava semeado de fabulosas imagens e falava de amor e a meia dúzia de perguntas que viu gravadas no "stencil" somente visavam respostas directas do tipo: Onde estava o x? O que tinha feito o y? Quem tinha visto o z? Para não tornar o interrogatório demasiado longo, apenas lhe acrescentou uma questão.
Como todas as provas que se prezam, esta começou pela leitura e interpretação do texto. Os alunos enfronharam-se nas ditas. Mas, volvidos alguns minutos, um após outro, todos os alunos da professora cumpridora e experiente suspenderam a escrita. Ora coçavam a cabeça, ora manifestavam outros sinais de impaciência e angústia. O professor novo e inexperiente apercebeu-se de que haviam esbarrado na pergunta número sete. E não ousavam passar-lhe à frente, porque a senhora professora era exigente e tinha avisado que não poderiam deixar qualquer das perguntas para trás, sem resposta.
Quase todos os putos do professor moço e inexperiente já estavam quase a acabar a redacção de vinte linhas e tópicos obrigatórios, quando algumas lágrimas já assomavam nos olhos suplicantes de alguns dos óptimos alunos da velha e experiente professora. O professor não se conteve. Foi junto de cada um e sussurrou-lhes uma qualquer mensagem ao ouvido, que os deixou aliviados e lhes permitiu desencalhar o raciocínio.
Acrescente-se que a sétima das questões era imperativa e rezava assim: "Depois de leres este bonito poema, diz o que é, para ti, o amor."

II - Os azares da vida levaram a Mirinha a frequentar uma escola na qual não era hábito fazer-se testes simultâneos e iguais para todos os alunos. Por esta e outras razões, a pequena não desenvolveu as mais elementares competências "transversais" do desenrasca académico, entre as quais avulta a arte de bem copiar todo o teste.
Claro que, pelo fim do último ano de estadia na "primária", ainda lhe deram (sob a forma de jogo) a possibilidade de penetrar os mistérios do estranho mundo dos testes e aceder aos estranhos rituais que os acompanham.
Mas a pequena não conseguia perceber por que razão o teste a mandava escrever o que o personagem da história tinha visto, se a resposta estava escarrapachada no corpo do texto e à vista de toda a gente. O seu apurado senso crítico levava-a a considerar que a cópia das frases constantes do texto se constituía num desperdício de tempo e de tinta. A certa altura do jogo, quis saber porque estava o professor ali estava especado, porque não ia para outro sítio fazer algo de útil. Quando o professor lhe respondeu que, na escola para onde ela iria no ano seguinte, era hábito haver um professor a vigiar os alunos enquanto estes faziam testes, a Mirinha perguntou: "Para quê?"
Decorridos quatro anos, a Mirinha frequentava o oitavo ano e lá se ia safando entre um três e um quatro na pauta. Por uma questão de princípio (ou porque a aprendizagem de uma determinada atitude se tinha processado na "primária"), não incorria naquilo que começara a classificar de "deslealdade". Até que, um dia, chegou a casa visivelmente incomodada e a mãe quis saber o porquê da arrelia.
Ao cabo de algumas insistências, a Mirinha lá desembuchou:
Hoje, tive teste. A meio, professora foi chamada ao telefone, acho eu. E quando voltou, percebeu que muita gente tinha copiado. Vai daí, disse que nos ia tirar dez pontos a todas.
A todas? ? perguntou a mãe, surpreendida.
Sim, a todas! ? confirmou a Mirinha.
Não me digas que tu também... ? insistiu a incrédula progenitora.
Não! Que eu saiba, fui a única que não copiou! ? retorquiu peremptória a jovem.
E, então? Não percebo! Não sabias dizer à professora? - devolveu-lhe a mãe.
Oh mãe, e tu achas que a professora ia acreditar em mim?

Continua num próximo número

Escreveu o meu bom amigo Ademar: "Dir-me-ão os românticos (que ainda os há) que só uma práxis pedagógica perversa, imbuída de uma lógica judicialista primária, transformou uma avaliação que deveria ser permanente e eminentemente formativa (educativa) numa penosa sucessão de actos litúrgicos (...) Dir-me-ão os românticos (que ainda os há) que os tribunais não cabem nas escolas e que os professores que se assumem como julgadores omnipotentes e omniscientes da culpa ou do mérito dos outros estão na profissão errada. Mas..."

(A moral das histórias fica guardada para um próximo número, se lá chegarmos)

José Pacheco
Escola da Ponte / Vila das Aves


  
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Edição:

N.º 88
Ano 8, Fevereiro 2000

Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

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