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Parece Mesmo Alegria

Decidi partilhar duas histórias com eventuais leitores, no propósito (há sempre um...) de afagar o ego aos professores e lhes ampliar a auto-estima, num tempo em que tanta lucubração teórica se produz sobre o fenómeno da "desmotivação profissional" sem que da erudição resulte uma réstia de solução. E, depois... todos terão, certamente, histórias semelhantes para contar. Não é assim?
Os episódios falam por si, assim mesmo como me foram contados por um amigo professor que conheço há muitos anos. Escolhi-os entre as memórias que guardo na farmácia do espírito e são antídotos para todos os padecimentos e vacina contra o chamado "mal-estar docente". O primeiro é recente, o segundo remonta à década de oitenta, mas estão ligados pelo seu significado.
Não lhes acrescentarei qualquer "enquadramento teórico", nem buscarei construir uma moral da história. O eventual leitor fá-la-á, se quiser.

Primeiro episódio

Alguém a quem narrei este episódio comentou que a possibilidade de ocorrer uma coisa assim é de um para um milhão. Mas aconteceu. E não é por acaso que há acasos, como veremos adiante.
O Paulo era o mais novo dos dois amigos desta história. Tinha ficado pela quarta classe antiga e o seu amigo era professor. O Paulo andava preocupado. Pediu conselho ao amigo:
- "Sinceramente, qual será a melhor escola para matricular a minha filha na "primeira classe"? Faça de conta que a Catarina era sua filha!"
Lacónica e sinceramente, o seu amigo professor respondeu:
- "Há bons professores em todas as escolas."
Mas o Paulo não desarmou:
- "Não é bem assim. Na minha primeira classe, eu tive dois professores. Um tratou-me tão bem que eu nunca mais o esqueci. A outra foi uma cabra que me fez odiar tanto a escola que eu mal fiz a quarta, raspei-me dali para fora."
- "Como é que foi?" - retorquiu o amigo.
- "Eu era muito pobre e a professora fazia distinção. Pôs-me ao fundo da sala e era só porrada para mim e para mais três da minha ilha."
- "Mas... e o outro professor?" - demandou o amigo.
- "Esse era muito diferente. Tratava-nos a todos com meiguice e paciência. Nunca nos bateu. E nós até éramos para aí mais de trinta! E éramos muito traquinas, difíceis de aturar. Se eu hoje sou alguma coisa devo-o a ele. Ainda hoje me lembro dele quando tenho de decidir da minha vida... naquelas alturas...não é..?"
O amigo professor interrompeu-o:
- "Mas o que foi feito desse tal professor?"
- "A meio da primeira classe, ele chamou-nos, um a um, ainda me estou a lembrar quando chegou a minha vez. Abaixou-se, assim, pôs-se da minha altura e disse-me: Paulinho, eu vou ter de ir embora, tenho de ir para a tropa. Sabes o que é? Eu até me deu vontade de chorar, mas disse que sim co'a cabeça, que eu até sabia que o Eduardo (o "Bife" lá da minha ilha) tinha morrido na guerra de Angola. Despediu-se de todos, mesmo dos mais pobres como eu."
- "Em que escola andaste? Em que ano entraste na escola?" - perguntou o amigo.
O Paulo respondeu. E era o mesmo ano e a mesma escola onde o seu amigo tinha começado a carreira de professor. Este ainda arriscou esclarecer uma última dúvida:
- E só havia uma "primeira classe"?
O Paulo respondeu negativamente, mas acrescentou:
- "As outras três "primeiras" tinham professoras, só a nossa é que tinha um professor."
- E como era esse professor? - perguntou-lhe o amigo, já com evidentes sinais de inquietação a percorrer-lhe o rosto.
A descrição feita pelo Paulo ajustou-se perfeitamente à pessoa que o seu amigo professor tinha sido trinta anos antes.

Segundo episódio

O Nelson chegava pontualmente atrasado à escola. Todos os dias o professor se sentia tentado e no direito de o interpelar, de lhe perguntar das razões do invariável atraso. Até que, não resistindo à tentação, mas com muito jeitinho, arriscou a pergunta: "porque chegaste só agora?"
O Nelson explicou e o professor ficou a saber que, na noite da véspera e mais uma vez, o pai havia "arreado uma coça na mãe", que ela até tinha ficado "com pisaduras nas pernas e um olho deitado abaixo". No meio da confusão, o Nelson, como o mais velho de três irmãos de diferentes pais, fizera uma retirada estratégica, refugiara-se com o resto da família num anexo-tugúrio de zinco e tijolo sem reboco.
Explicou e o professor ficou a saber como o Nélson conseguiu, já noite adentro e com o pai ausente no "café de senhor Tião", ajudar a mãe "a ligar a perna e a dar o biberão ao Tiaguinho". E concluiu:
- "Acordei com muito sono, professor, porque a Carlinha (a irmã do meio) não me deixou dormir. Chorou a noite toda. Os ratos roeram-lhe uma orelhinha."
O Nelson apercebeu-se de que o professor estava com dificuldades de achar palavras para preencher o silêncio que então se fez. E acrescentou:
- "Mas não importa, professor. Quando venha para a escola, sinto cá dentro uma coisa... Olhe, parece mesmo alegria!"

José Pacheco
Escola da Ponte / Vila das Aves


  
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Edição:

N.º 85
Ano 8, Novembro 1999

Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

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