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Uma Letra Legível e Três Mochos

A Guidinha tinha treze anos, metade contados na escola. A professora era nova, boazinha, tinha jeito para ensinar. Só lhe custava entender o discurso dos miúdos, quando a lição saía do livro e se passeava pelo meio físico e social.
Não havia dicionário que lhe valesse na aflição. Ela lá ia decifrando as frases dos miúdos pelo sentido geral e por aí se quedava, sem confessar a sua fraca compreensão, pois é bom de ver que a uma professora se admite tudo... excepto a ignorância.
Era o primeiro dia das férias de Natal. Pelo fim da manhã, a Guidinha passou pela escola, almeiro na mão. A professora preenchia as fichas de informação trimestral.

Ó Guida, queres levar a ficha ao teu pai? Olha que ele vai ficar satisfeito, porque já estás melhor na caligrafia. Ele que não se esqueça de assinar aqui ao fundo. O teu pai sabe ler e escrever?
Sabe, sim senhora, minha senhora. 'Té calha bem qu' eu vou ir levar-lhe o presigo ó trabalho.
Então vai e não te demores.
A Guidinha não levou meia hora a voltar. Vinha chorosa, meia face avermelhada e os olhos no chão.
Que te aconteceu, rapariga? - demandou a professora.
A Guidinha continuava de olhos no chão, a voz presa na garganta.
Onde puseste a ficha, rapariga? Já está assinada?
-A culpa foi da senhora! - volveu-lhe pesarosa a Guidinha.
-Culpa? Culpa de quê? Explica-te que eu não estou a perceber nada e já estou a perder a paciência!
A Guidinha abanou a cabeça e, com voz embargada, acrescentou:

Cand' acheguei ó trabalho do meu pai, tropei à porta e logo qu' ele abriu, dei-lhe a folha, como a senhora m' amandou.
Sim. E então? Ele leu?
Ai não, que não leu! Leu, sim senhora, minha senhora.
E então? Despacha-te lá!
E adei, bem cá toma, assentou-me uma poleia e por pouco não me mirava c' um grande rebo!
??? Não estou a entender... E ele não disse nada?
Disse, sim senhora, minha senhora. Disse qu' eu era a vergonha da cara dele.
Vergonha? Vergonha, porquê?
Porque leu na ficha que a senhora tinha escrito que eu tenho a letra "legível".
Mas isso é bom -
retorquiu-lhe a professora.
É , é!... Mal ele leu, disse "Com qu' então tens a letra legível?! Ora toma! E enfiou-me uma lapada qu'eu até contei as caleiras todas, uma a uma!
Baralhada, a professora rematou:
Trouxeste, ao menos, a ficha?
Não, minha senhora. O meu pai alagou-a e atirou-a para uma toca.

A jovem professora deu-se ares de ter decifrado a resposta e despachou a Guidinha dizendo-lhe que sossegasse e que depois falaria com o pai. A Guidinha não tinha culpa de que a caneca se tivesse virado no meio da contenda e a ficha tivesse ficado encharcada em vinho tinto. O "atirar da ficha para uma toca" é que não se encaixava totalmente na sua representação do episódio... Mas também não era necessário. A professora tinha a explicação à mão de semear: "Eles não nos entendem". "Os pais resistem em colaborar com a escola. É uma questão de mentalidade".
Ela não sabia que, antigamente e com maior frequência do que pensávamos, o professoral analfabetismo em culturas não letradas introduzia "ruídos" na comunicação. Alguns professores ainda não tinham tido tempo para ler o Bernstein. Hoje, já entendem as diferenças entre "códigos restritos e elaborados". Antigamente, era a Guidinha quem pagava as favas, porque o dardo da ficha de informação nunca se transformou em boomerang...
Bem diferente é um outro episódio. Idêntico era o facto de o professor ser novo na escola e de também ser bonzinho para as crianças e ter jeito para ensinar.
Nascera na cidade grande e ali estava, numa pequena vila de província, numa escola que funcionava num pardieiro sem casa de banho. Na sua ingenuidade, o jovem professor acreditava que os pais dos alunos eram pessoas inteligentes e se preocupavam com o bem-estar dos seus filhos. Pela manhã de um Sábado de Outubro, perguntou ao Conselho Escolar se havia sido feita alguma tentativa de diálogo com os encarregados de educação. Teve como resposta alguns sorrisos condescendentes e um único conselho:
- "Os pais, colega? Os pais, quanto mais longe, melhor! Fique quietinho no seu canto porque, sabe como é, cada macaco no seu galho. Não queira arranjar problemas e vá por mim, que já cá trabalho há mais de quarenta".
O jovem professor encaixou a deixa, mas não se deu por convencido. Findo o curso duplo da manhã de segunda- feira, foi directo à tasca da Maria Morcega. Enquanto almoçava na mesa do canto, ia deitando um rabinho de olho à freguesia. Decerto que algum dos inacessíveis pais andaria algures por ali.
O Sérgio entrou na tasca abraçado a uma enfusa e pôs-se em bicos de pés rente ao balcão:
Miquinhas, meio quartilho de espadal, faz favor. É para assentar".
Só à saída se apercebeu da presença do seu novo professor. Corou, sorriu, abalou a dar a notícia ao pai.
Coisa nunca vista por ali! Enquanto engolia a água de unto e o feijão com linguiça, o pai insistia com ele:
- "Tu tens mesmo a certeza que era o teu professor?"
Concluído o breve repasto e movido pela curiosidade, dirigiu-se à tasca da Maria Morcega. Mandou vir um "negus traçado" para cortar a gordura da linguiça... e para ter o pretexto de observar o inusitado personagem (observação partilhada, a espaços, pelos clientes habituais da tasca, sempre que se geravam breves tréguas no entusiasmo posto na sueca e na bisca lambida).
Entretanto, o Sérgio veio colar-se às pernas do pai e, discretamente, apontou o dedo na direcção da mesa do canto.
Não se aponta, que é feio! - corrigiu o pai, enquanto se aproximava da dita.
O senhor desculpe, mas aqui o meu ganapo disse-me que o senhor é que é o professor dele. Não, não se incomode, não precisa de se levantar! Só queria cumprimentá-lo e dizer-lhe que tenho muito gosto em o conhecer. É a primeira vez que encontro um professor, porque largo o turno das duas e, a essa hora, já os professores voltaram para casa.
O professor convidou-o a sentar-se, mas o pai do Sérgio retorquiu:
Fazia muito gosto que viesse beber um copo a minha casa.
O professor já tinha almoçado e tomado o cimbalino. Hesitou. (Vinho a esta hora, ele que andava a sumo e a água?!...) Mas sentiu que seria naquela hora, ou nunca mais. E lá foram, pai e professor, com o puto mais adiante. De modo que, à chegada, já três "mochos" os esperavam no quintal.
Faça o favor de se sentar. É como se estivesse em sua casa! Eu já volto.
E voltou com uma garrafa de verde e dois copos, que pousou no mocho do meio. Falaram do Sérgio, da necessidade de obras na escola... com o copo de tinto a agir como mediador intercultural.
O néctar (de se lhe tirar o chapéu!) aqueceu as entranhas e os espíritos naquela fresca tarde outonal. Ao cabo de duas horas de conversa e três botelhas vazias, as palavras saíam bem mais fluentes, mais amigas. Já não era um pai e um professor que ali estavam. Eram dois homens a preparar o projecto de vida de outro homem.
Depois... Bem, o depois ficará para depois. Por agora, importa apenas acrescentar que isto aconteceu nos dinossáuricos tempos de 70, quando o Don Davies ainda não tinha investigado estas questões, nem o Ramiro Marques tinha nascido para a escrita. Mas, se hoje sobra a investigação e a literatura, o que faltará para que se deixe de considerar os pais dos alunos como criaturas inacessíveis?
Talvez três mochos.

José Pacheco
Escola da Ponte/Vila das Aves

1 Para ajudar à compreensão, elucidarei o leitor sobre o significado de alguns termos falados (e pensados...) pela Guidinha: "presigo" significa "almoço"; "almeiro" é o mesmo que "marmita"; "e adei" quer dizer "e então"; um "rebo" é o mesmo que uma "pedra"; "bem cá toma" é uma expressão de vasto espectro semântico que, neste contexto quer dizer, mais ou menos, "Pudera"; "caleiras" é o regionalismo equivalente às nossas bem conhecidas "escadas"; "poleia" significa "tareia"; "mirava" é a forma verbal equivalente a "acertava"; "alagar" é o mesmo que "estragar"; "vou ir" parece redundância, mas é mesmo assim que se diz "vou"; "enfusa" é equivalente a "caneca"; "mocho" é o mesmo que "banco"; "botelha" vê-se logo que é uma "garrafa"; fácil é de ver que uma "toca" é um "buraco".

2 Afonso, A. (1998). Política Educativa e Avaliação Educativa. Braga, UM- IEP: 321


  
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Edição:

N.º 79
Ano 8, Abril 1999

Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

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