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O Alpha e o Ómega

Ao que parece, o ensino primário (eufemisticamente apelidado de "primeiro ciclo do Ensino Básico") voltou à agenda política. Não sabendo que desígnios presidem à súbita euforia, mas prevendo que pouco dure o entusiasmo posto nas denúncias, aproveito o ensejo para dar o meu insignificante contributo para a campanha em curso.
Faço votos de que o programa Alfa obtenha o maior dos exitos e de que não venham a ser necessários, mais tarde, outros programas remediativos. Desde há um quarto de século (!), uma qualquer escola dos restantes ciclos com a dimensão do agrupamento a que pertenço recebeu, anualmente, alguns milhares de contos para despesas de funcionamento. O primeiro dos ciclos nada recebeu. Será desta vez que o primeiro dos ciclos vai ser indemnizado por perdas e danos?
No ano lectivo transacto, em despesas com expediente, limpeza, funcionamento da cantina, reprografia, deslocações, aluguer de equipamento, telefone e aquisição de diverso material, a minha escola gastou algumas centenas de contos. Mendigámos financiamentos junto das autarquias e do Governo Civil. Tudo em vão. As despesas ficaram por conta dos actores da mudança.
Considerámos até um privilégio que a minha escola tenha recebido no mês de Outubro de 1998 a verba atribuída pela câmara para expediente e limpeza... relativa ao ano de 1996. Uma autêntica fortuna: quatro contos por sala, num total de dezasseis contos para um ano inteiro. Quanta generosidade! O João Barroso bem repete que a autonomia é um investimento nas escolas e que tem custos, mas há quem continue a confundir financiamento com a dupla tributação dos pais dos alunos e com o remedeio dos peditórios.
Perante o primeiro dos ciclos do ainda hoje mítico Ensino Básico, a atitude do Estado foi e continua a ser de quase total desresponsabilização, quando não de indiferença. O esforço dos actuais responsáveis políticos e as boas intenções de alguns normativos ainda não lograram atenuar os efeitos de muitos os anos de abandono. Um exemplo concreto: a gestão dos refeitórios continua a não ser incluída no Orçamento do Estado, a pretexto de ainda não ter sido feito um acordo com as câmaras municipais. Ainda não será desta vez que os alunos do 1º ciclo irão passar a ter estômago como os seus colegas dos restantes ciclos do básico, do secundário e até do superior.
Há algum tempo atrás, o "Público" deu-nos a conhecer as justas preocupações de um candidato a reitor da Universidade de Lisboa. Reconheci, na altura, a pertinência das suas preocupações e apressei-me a responder-lhe. Recordo, aqui e agora, a carta que lhe enviei.
Com grande dramatismo, o universitário comentava a falta de unidade funcional da universidade do seguinte modo: "quando não sabemos sequer como é que se vai pagar o papel higiénico daqui a alguns meses, é difícil pôr as pessoas a pensar no futuro".
Professor primário que sou, fiquei aliviado. Que sorte não ter de me preocupar com a falta do dito papel no futuro! Que privilégio não defrontar a ciclópica missão de pôr "pessoas a pensar no futuro", dado que tenho de me concentrar no sobreviver de imediato.
Estou igualmente dispensado de defrontar dificuldades menores como a de manter em funcionamento o ar condicionado, porque não o tenho na escola (quando calha, há uns gravetos para pôr na lareira); de pagar a conta do fax, porque também não há; de gerir os recursos de software, porque não há computadores (mas, em compensação, poupamos na ligação à Internet). Nem sequer temos a maçada de gerir um orçamento, pois também não o temos, como não temos direito a número de identificação fiscal.
O dinheiro não é tudo e, na minha escola, falta o dinheiro mas sobra o optimismo e a criatividade. Claro que, tal como nas universidades, temos um local onde as crianças satisfazem as suas mais elementares necessidades. Porém, no caso do primário, o ministério e a autarquia ajudaram-nos a resolver, de uma só vez, dois problemas: o de ter de dar de comer e o de dispôr de papel para o evacuar. Contrariamente ao que acontece na universidade, ou nos outros níveis de ensino, nenhum dos poderes subsidia a aquisição de senhas de refeição, ou paga os vencimentos aos funcionários das cantinas do primário.
Claro que é suposto que as crianças dos seis aos oito anos também tenham estômago, mas como se habituam a não comer, ficamos com o problema do papel higiénico automaticamente resolvido. Com esta inovadora estratégia de contenção (e para sossego do candidato a reitor) as nossas crianças hão-de chegar à universidade devidamente treinadas para o dispensar.

José Pacheco
Escola da Ponte / Vila das Aves


  
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Edição:

N.º 77
Ano 8, Fevereiro 1999

Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

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