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"Eu, com esta idade, nunca tinha visto nenhum!"

Li num jornal o comentário de uma professora do 1º ciclo que, ao cabo de mais de trinta anos de serviço, se vê envolvida na aventura de criar um agrupamento de escolas: "Veja lá que, há dias, houve uma reunião e estava lá um representante dos pais. Fiquei espantada! Eu, com esta idade, nunca tinha visto nenhum!"
A exclamação só constituirá surpresa para quem não viva o quotidiano de muitas das escolas do (ainda e apesar de tudo...) "ensino primário". Uma investigadora, hoje responsável política, dizia, em 1990 que "a realidade e complexidade da escola primária são mal conhecidas". Por via desse desconhecimento, os legisladores sempre recomendaram que, ao 1º ciclo fossem aplicadas "com as devidas adaptações...", este ou aquele artigo de sucessivas leis concebidas para os restantes segmentos do sistema. Ainda hoje, o 1º ciclo parece constituir um apêndice incómodo a montante do sistema, tão deificado no discurso como esquecido pelas medidas concretas de política educativa.
O Ensino Primário foi o sector sujeito à maior degradação, de forma assumida e sistemática, pelo Estado Novo. Desde 1974, o processo de democratização promoveu alterações significativas no estatuto social dos professores e na gestão das escolas, excepto nas do "primário". O que esperar do único ciclo do básico a quem a recusa de autonomia foi confirmada por decreto? Perante o primeiro dos ciclos do ainda hoje mítico Ensino Básico, a atitude do Estado foi de quase total desresponsabilização.
O esforço dos actuais responsáveis políticos e as boas intenções de alguns normativos não lograram ainda alterar situações discriminatórias. Um exemplo concreto: a gestão dos refeitórios, que continua a não ser incluído no orçamento de 1999, a pretexto de ainda não ter sido feito um acordo com as câmaras municipais. Ainda não será desta vez que os alunos do 1º ciclo irão passar a ter estômago como os dos restantes ciclos do básico.
Nas escolas de outros ciclos e do secundário, desde há muito, os professores exercem o direito de escolha dos titulares dos órgãos de direcção e de gestão. No primeiro dos ciclos, a gestão foi sempre assegurada por controlo remoto, a partir da sede do concelho, por um conjunto de pessoas ali colocadas por nomeação. As professoras primárias já não pediam autorização para se casarem, como no antigamente. Mas continuaram a pedir autorizações que não precisariam de pedir... só para "se sentirem seguras". E os senhores delegados autorizavam até o que não tinham que autorizar.
Será necessário recordar que, no decurso de mais de vinte anos de democracia, o primário perdeu ou foi arredado de todas as oportunidades de afirmação e que muitas das suas escolas são estruturas frágeis, sujeitas a indignidades? Um exemplo, entre muitos possíveis, dos anacronismos da gestão que tivemos/temos:
o ofício-circular de lançamento de um concurso saiu da instituição promotora em finais de Julho de 1993; as circulares saíram da DRE para as DLE em 27 de Agosto; a circular da DLE que dá conhecimento do lançamento do projecto chega às escolas em meados de Outubro; o prazo do concurso já tinha expirado.
Em outros casos, as escolas tinham mais sorte, quando a circular ainda lhes chegava dois ou três dias antes do fim do prazo para concurso. Mas outro problema se colocava pois o ofício-circular remetia as escolas para a consulta do regulamento de concurso... que se encontrava afixado nas instalações da DLE, ao dispor dos interessados, no horário normal de expediente. Mas a DLE ficava situada a 10 Km de distância e o expediente da DLE encerrava à mesma hora em que as aulas acabavam na escola. Logo, a máxima sorte a que as escolas poderiam aspirar era a de nem sequer chegarem a ter conhecimento da existência de tais projectos, o que, aliás, era frequente (e, como diz o ditado, "quem não vê, não peca").
No jornal que antes referi, outra professora do 1º ciclo desabafava: "Passei anos isolada. Tudo o que fazia era preocupar-me com os meus meninos, receber ordens e cumpri-las. Não podia dar um passo sem pedir autorização." Foi este isolamento físico e psicológico que engendrou insegurança, múltiplas situações de dependência e fomentou o individualismo. E hoje, a tradição age como factor de inibição de autonomia, volta-se contra a escola.
No decurso do processo de democratização, a imposição de uma tradição de dependência para além de um prazo razoável produziu efeitos desastrosos no primário. Como vemos, há razões para realçar os riscos de uma transição tardia para uma gestão diferente. Será necessário admitir que muitos dos riscos de assunção de autonomia estão dentro de nós, nos indeléveis traços que a tradição imprimiu na nossa cultura pessoal e profissional.
Como afirmou o professor J. Barroso, "a autonomia também se aprende". Mas o tempo perdido torna ainda mais curto o escasso tempo de prazos impostos. Haja esperança e vontade de aprender. Mas que ninguém espere milagres.

José Pacheco
Escola da Ponte / Vila das Aves


  
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Edição:

N.º 75
Ano 7, Dezembro 1998

Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

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