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Avaliação de quê?

Se, inequivocamente, se pretende que a avaliação de desempenho seja instrumento de 'melhoria da acção pedagógica', de 'valorização e aperfeiçoamento' (artº 3º do Dec-Lei nº 1/98) e, concomitantemente, de dignificação social e profissional dos professores, será necessário assegurar uma maior coerência às abordagens feitas à proposta de regulamentação apresentada pelo M.E.
Apresenta-se como indispensável o reconhecimento de que os professores não são todos iguais, mas também perceber que não há um único modo, mas múltiplas formas de ser professor, múltiplas interpretações do mérito profissional. Acresce que qualquer processo de avaliação para o desenvolvimento deve ter por origem a compreensão da sua necessidade. E mais: requer abertura de espírito, erradicação de preconceitos, responsabilidade e ética. Estarão todas as condições asseguradas? Vão nesse sentido as reflexões encetadas?
É frequente que as reflexões produzidas por especialistas condicionem as reflexões dos professores. Com frequência, os juízos precoces emitidos por dirigentes e as profundas análises dos responsáveis sobrepõem-se (ou substituem) as análises que (seria pressuposto) os professores viessem a fazer por si. Com mortal frequência também, alguns líderes e iluminados tendem (generosa e abnegadamente, sublinhe-se!) a pensar pela cabeça do professor e buscam induzi-lo a extrair conclusões do que já está concluído.

Alguns mitos

Longe vão já os tenebrosos tempos em que os professores eram avaliados pela percentagem de alunos que obtinham sucesso nos exames. Hoje, o que se avalia realmente?
Se estivéssemos na presença de uma verdadeira avaliação de desempenho, admitir a transição de um escalão para o seguinte por ter decorrido determinado tempo de serviço, seria tão disparatado como transitar um aluno do segundo para o terceiro ciclo sem aproveitamento só porque, apesar de nada ter aprendido, nunca faltou à escola. Menos caricaturalmente e consciente de remar contra a maré da magna opinião, acrescentaria ser inapropriado fazer coincidir o momento de avaliação com o termo de um período de tempo correspondente a um qualquer escalão. Persiste uma (intencional?) confusão entre experiência e formação experiencial, o equívoco de considerar que o tempo de serviço (num escalão, ou ao longo de uma carreira) constitui, inevitavelmente, tempo de melhoria de desempenho. Não está provado, mas tacitamente admitido. O tempo de serviço até pode ter operado a funcionarização do professor, mas nem por isso deixa de ser o primeiro critério. Eu diria mesmo ser o único. Pressinto que, também neste aspecto, a dita avaliação não passe de uma farsa, que interessará a muitos dos que estão na profissão de professor, mas agirá contra os interesses dos que são professores.

Alguns dilemas

Confunde-se o ser professor com o ter um emprego de professor. Avaliar-se-à do mesmo modo o que encontra numa escola uma oportunidade de emprego que não conseguiu em mais lado nenhum e o que na escola se realiza? Serão idênticos os critérios de avaliação para o que investe na escola as suas trinta e cinco horas de trabalho semanal e o que vai à escola dar umas aulas sobrando-lhe tempo para uns biscates no particular? Se ninguém aponta estas situações, como poderá a avaliação de desempenho contribuir para a dignificação da função?
Por outro lado, o processo de avaliação não deverá ser uniformizador, mas contextualizar a acção profissional nas condições de trabalho que cada professor defronta e as características do projecto em que é suposto estar envolvido.
Parece que o coro que anatemiza o paradigma da diferenciação silenciou as vozes dissonantes. Também eu nutro reservas relativamente a pretensas elites. Mas pretender-se-à a manutenção de consensos que ocultam mediocridades? Será contemplado com a menção de 'Satisfaz', quer o docente que desperdiça 50 minutos na fastidiosa leitura aos alunos do conteúdo de um manual, quer o professor que desenvolve nos alunos competências de pesquisa e o prazer de ler e fazer descobertas? Serão 'premiados na igualdade', quer o professor que intervém para ajudar a resolver, educativamente, conflitos entre alunos, quer o que se desvia, aliena a sua responsabilidade e remete a resolução para um rol de punições que dá pelo nome de regulamento disciplinar? Serão indiferenciados os professores que intensificam a ligação à comunidade e os que só querem ver os pais pelas costas? Os que constroem caminhos de autonomia e os que se desfazem em lamúrias?
Creio que se poderá até correr o risco de penalizar os que se atreverem a desenvolver um trabalho diferente, inovador. Na boca de muitos (ditos) professores, o epípeto do 'sacerdócio' tem conotação depreciativa. Ouvi dizer, há alguns anos: 'O F. é bom colega, mas trabalha muito e, por isso, desprestigia a classe'. E Roger Garaudy escreveu que 'toda a profissão (...) pode ser exercida ao estilo mercantil, ou ao estilo sacerdotal: mercantil, se é apenas um meio cujo objectivo é acumular o máximo de ter e de poder; sacerdotal, se, ao contrário do individualismo, a pessoa se considera primeiro como membro da comunidade universal, pessoalmente responsável por contribuir para o desabrochamento humano de todos os outros'.
Por estas e outras resultantes do senso comum pedagógico é que muitos vão dando aulas sem fazer ondas. Muito menos aspiram a uma actividade docente investigadora das práticas, não vá o diabo tecê-las. Inúmeras experiências com êxito não ultrapassam as paredes da sala de aula. E os professores mais entusiastas chegam mesmo a ser olhados com suspeição pelos restantes. A par de secretas melhorias jamais avaliadas, coexistindo com profissionais dignos do nome, a incompetência e o desânimo assentaram arraiais nas escolas. Se a avaliação que se anuncia deixar incólumes vícios instituídos, se não abalar o status quo reinante, se não contribuir para a reformulação da cultura pessoal e profissional dos professores, para que servirá?

E que dizer dos avaliadores?

Que modelos, que representações, que estereótipos comandam a avaliação de desempenho? Que quadros de referência lhe servem de suporte? Quem avalia com competência para avaliar? Em função de quê? Com que legitimidade? E quem avalia o desempenho dos que avaliam o desempenho? Onde estão os avaliadores capazes de agir como orientadores, que cumpram um papel de aconselhamento? Os avaliadores possuem alguma formação acrescida em Educação? Beneficiaram de alguma preparação específica para as tarefas de que os incumbem? Serão capazes de imprimir uma dimensão formativa e de cooperação nos processos de avaliação? Lograrão obter consensos sobre conteúdos e procedimentos? Como diria o personagem do drama, 'a situação não augura nada de bom!'
Entre outros componentes do desempenho, será objecto de avaliação (art.º 6º) a 'relação pedagógica com os alunos'. O que norteará essa avaliação, se sabemos da inacessibilidade do avaliador aos dramas que se desenrolam dentro da sala de aula?
Se cada professor tradicionalmente se encerra na sua sala, a avaliação do seu desempenho com os alunos será mais um exercício de adivinhação! Sejamos claros: se o acto pedagógico essencial decorre no maior dos segredos, mais que subjectiva, tal avaliação será obscura. Quem sabe (!) não se desenha no horizonte uma nova especialização designada por avaliação esotérica do desempenho ? Se assumirmos (como é preciso e sem vergonha) que a mentalidade curricular peca por escassa, ou pela ausência, nas escolas e que os relatórios ditos críticos raramente o são, crítica será a situação regulamentada.
Faz pouco sentido uma avaliação de incidência pessoal, se não for considerada a dimensão do colectivo, do trabalho de equipa. E haverá tradição de trabalho cooperativo nas nossas escolas?
Estabelece o artigo 8º da mais recente proposta de diploma que o documento de reflexão crítica seja 'objecto de apreciação pelo órgão de gestão do estabelecimento de educação ou de ensino em que o docente exerce funções, tomando em consideração o parecer emitido pelo respectivo órgão pedagógico'.
Atentemos nas expressões 'apreciação' e 'tomando em consideração'. Só nos faltava que o órgão de gestão desconsiderasse o pedagógico! Mas vamos lá falar a sério... Os avaliados poderão recusar os avaliadores que lhes couberem em sorte? Os avaliadores poderão ser avaliados pelos avaliados? A avaliação não deveria partir da iniciativa dos professores?
Sem generalizar, direi que a atitude pedagógica dos titulares de muitos órgãos de gestão que conheço é, no mínimo, de insensibilidade. Prevalecem lógicas administrativas e imperativos de subsistência que empurram os órgãos de administração e gestão para uma gestão de sobrevivência, alheia a qualquer ideia de projecto. A pedagogia só por acaso, ou por necessidade de imagem, assoma timidamente à porta dos C. D., é esmagada sob o peso das soluções imediatas para velhos problemas. Se a tarefa dos nossos professores-gestores já é ciclópica, tão mal-entendida e denegrida por outros professores, para quê incomodá-los com mais um fardo de responsabilidade?! Para evitar maiores problemas e para não desconsiderar a pedagogia, os órgãos de gestão hão-de brindar todos os professores com um redondo Satisfaz. Afinal, somos, ou não somos todos colegas do mesmo ofício? Quem quer estragar ainda mais o ambiente ?
Nas actuais condições, ao órgão de administração e gestão deveria competir apenas a responsabilidade na formalização de decisões tomadas em sede pedagógica. E, mesmo assim...

O Plano de Formação

É ambígua a referência a este documento. Urge clarificar o conceito de plano de formação. Constituir-se-á em alternativa às colecções de créditos? Emerge de necessidades recenseadas no quadro da concretização de projectos educativos? Neste caso, qual será a capacidade de resposta dos centros de formação? Consistirá num mero somatório de acções avulsas, como tem sido regra?
Repito o que escrevi há dois anos neste mesmo espaço: assim como o acumular de anos de serviço pode não corresponder à melhoria do exercício da docência, também o acumular de créditos não pressupõe aumento da qualidade do desempenho. Enquanto não for relacionada a formação dos professores com as necessidades do seu contexto escolar, a formação centrada na escola continuará a ser uma quase-mentira.
O princípio da valorização da imagem pública dos professores e das escolas não deverá ser dissociado do princípio da reflexão crítica sobre as práticas individuais e organizacionais que melhorem a qualidade dos processos de ensino e de aprendizagem. Acredito que todos os professores estarão interessados, não na institucionalização numa pseudo-avaliação de desempenho, mas numa avaliação que promova o seu desenvolvimento pessoal e profissional. Mas, até agora, nada se avaliou, ninguém avaliou coisa nenhuma, ninguém foi avaliado. E, pelo caminho por que muitos de nós enveredaram, a avaliação continuará sendo um mero acto de rotina administrativa.

Novíssima verba

De cada vez que evitamos interrogações, perdemos uma oportunidade de afirmação profissional. Sempre que permitimos o escamotear de questões, permitimos a manipulação das opiniões, anulamos possibilidades de crescimento profissional. Quando a prudência que garante a sobrevivência adere a discursos corporativamente correctos, fica adiado o desenvolvimento da nossa cultura pessoal e profissional. Ficamos todos menos professores, ainda que as 'avaliações' o não denunciem.
Os maiores interessados numa efectiva avaliação de desempenho são os professores. Mas as perversões e limites impostos ao debate remetem-nos para atitudes defensivas, conservadoras. É louvável o esforço que alguns grupos, associações, órgãos de gestão e pedagógicos, bem como algumas estruturas representativas dos professores têm dispendido no sentido de dinamizar a discussão de documentos de política educativa. Mas é decepcionante verificar que muitos professores continuam a reproduzir lugares-comuns de uma crítica estéril, quantas vezes sem terem lido sequer uma linha dos documentos que criticam.
Quando compreendem que não é esse o caminho? Quando compreendem que é preciso dizer o que preciso que se diga?

José Pacheco


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 65
Ano 7, Fevereiro 1998

Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

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