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Silêncios e mistérios

A mensagem do Zé Paulo deixou-me deveras preocupado. Somente o seu entusiasmo me ajudou a esbater o temor de um desenlace: Caro amigo Zé Pacheco, esta doença é mais chata porque ocupa demasiado tempo (consultas, exames, tratamentos, etc). Estou a recuperar bem a mobilidade e já passei da cadeira de rodas para as canadianas. Estou a fazer quimioterapia e as minhas barbas parecem condenadas... Lá se vai o velho visual! No tempo e com a energia disponível já comecei a trabalhar no projecto que tinha para a Revista. Como calculas, conto sempre contigo.
Longe do meu país, amigos davam-me notícias de alguma esperança e de muitas recaídas. Alguns meses decorridos, a saudade dos meus netos trouxe-me a Portugal, num Setembro em que as escolas se animam com a alegria das crianças. Porém, este foi um Setembro triste. A primeira notícia que deram foi a da sua morte.
Quando foi a sepultar, preenchi o silêncio com palavras do Brecht, que nos fala de homens que lutam toda a vida e são imprescindíveis... Regressado ao meu voluntário exílio, escrevi estas linhas para lhe dizer que esta não será a última “página”, porque a memória dos homens bons é perene e outros companheiros retomarão o seu afã.
O Zé  Paulo não desejava ter um funeral religioso. mas ajudou a re-ligare o que na educação está separado. A sua reflexão, fértil e profunda, aliada ao profundo conhecimento dos professores, contribuiu para reduzir a solidão da docência e para alimentar solidariedades.
Há cerca de vinte anos, escreveu na sua Página que os professores precisam mais de interrogações do que de certezas... É como dizes, amigo Zé Paulo: que certezas temos? Quase nada sabemos dos mistérios da vida nem da morte que, prematuramente, nos roubou o teu convívio. Talvez por isso, me ocorreu falar-te de mistérios, num textinho como aqueles que te fui enviando, ao longo de tantos anos em que contigo aprendi até nos silêncios.
A Soraia era uma menina “difícil” – como disseram os seus professores e colegas – pois se quedava num mutismo inviolável. Se lhe dirigiam alguma pergunta, olhava para o chão. Ao cabo de alguns dias de prudentes aproximações, logrei uns instantes de atenção. Tantas perguntas lhe dirigi, que dela obtive uma breve fala:

Vejo coisas. Mas os outros meninos fazem troça de mim. Até a minha mãe me diz para ter juízo...
Eu acredito que tu vês coisas.
Você  acredita? Sério?
Sim. Que coisas vês?
Um menino de camisa de mangas aos folhos, que sai de uma pedra, na eira do cafezal, todos os dias, por volta das três da tarde. Volta a entrar na pedra, quando o sol vai embora. Eu falo com ele. Não falo palavras, mas sei brincar com ele. As pessoas grandes dizem-me que ele não existe, que é imaginação... Você não tem medo do que eu estou dizendo?
Não. Porquê? Deveria ter?...

Sorriu. Fomos brincar na eira do cafezal. Porque nem só do cognitivo vive o homem e porque o Caeiro, há já um século, escreveu o essencial: pensar é estar doente dos sentidos. É porque sinto – e porque creio que todos os companheiros sentem – a tua indelével, sábia e tranquila presença, não te direi adeus. Continuarei a enviar-te uns textinhos.

José Pacheco

 


  
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Edição:

Edição N.º 186, série II
Outono 2009

Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

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