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Da curiosidade das crianças ao pessimismo dos mais velhos

ABERTURA DO ANO LECTIVO

Seja pelos jornais, pela televisão ou pelas conversas que se vão ouvindo aqui e ali, os comentários parecem ser praticamente unânimes: o panorama geral do país não anda famoso. A performance da economia vai de mal a pior, o sentimento de insegurança cresce com a "vaga de criminalidade" que varre o país e até a selecção nacional de futebol parece deixar contagiar-se pelo desânimo perdendo com a sua congénere dinamarquesa nos últimos minutos de jogo. Perante o espírito pessimista que atinge o país, que expectativas têm alunos, professores, funcionários e pais face ao ano lectivo que agora se inicia? De regresso ao quotidiano após as férias de Verão, fomos ouvir as opiniões dos diferentes elementos da comunidade escolar.

Impaciente por aprender a ler mais depressa

Com apenas sete anos, Carina Gomes não sabe ao certo o significado do termo "expectativa", palavra que a própria confessa considerar mais própria do vocabulário dos adultos. Quando lhe explicamos o conceito através de palavras mais adequadas à sua idade, exclama um "Ah!" e afirma estar impaciente por aprender a "ler mais depressa" de forma a poder desfrutar de todos os livros que guarda na estante do seu quarto. "Gosto muito de ler, mas ainda preciso da ajuda da minha mãe para as palavras mais difíceis. Quando passar de ano espero já poder fazer isso sozinha".
Elisabete Cardoso, com a mesma idade e colega de turma da Carina, quer acima de tudo aprender a tirar melhor partido do computador, que admite ser aquilo que mais gosta de fazer nas aulas. Na sua escola, porém, existem poucos e o tempo de utilização que cabe a cada aluno é escasso. Como já ouviu falar dos computadores "Magalhães" na televisão, tem esperança de que a sua escola possa vir a ser uma das contempladas com o programa do Governo. "Era muito bom, porque assim podíamos ter computadores para todos...", diz com um sorriso tímido.
A professora das duas miúdas, Fernanda Tavares, 43 anos, professora do 1º ciclo com vinte anos de carreira, confessa, por seu lado, que após um "ano conturbado" marcado pela deterioração das relações entre a classe e a ministra Maria de Lurdes Rodrigues, as expectativas de um ano mais tranquilo "não são muitas".
"Temos sempre esperança que algumas das medidas aprovadas pela tutela possam vir a ser renegociadas, mas mesmo com a pressão dos sindicatos penso que será muito difícil". A passagem de competências para as autarquias ao nível do 1º ciclo prefigura um futuro ainda mais incerto. Na opinião desta docente, as assimetrias entre os vários municípios poderão vir a acentuar-se. "A não ser que se crie um mecanismo de compensação, as autarquias mais pobres, em particular as do interior do país, terão mais dificuldades em prestar um serviço educativo de qualidade. Tudo passará pela forma como cada câmara municipal encare a importância do sector educativo".
Aproveitando a hora de saída dos alunos, a PÁGINA falou também com dois dos encarregados de educação que aguardavam no exterior os respectivos filhos. André Tavares, 35 anos, designer, espera sobretudo que este ano lectivo seja mais tranquilo que o anterior. "No ano passado os professores andavam em polvorosa com toda a alteração legislativa que foi introduzida. E isso sentia-se nas reuniões de pais, onde eles se queixavam que estava a ser muito difícil trabalhar com tranquilidade". Admitindo estar particularmente bem informado sobre estas e outras questões pelo facto de a sua mulher ser também ela professora, Tavares diz compreender "até certo ponto" o desagrado dos docentes mas afirma que "algumas das medidas eram necessárias". Isto porque, na sua opinião, "era indispensável criar regras mais transparentes sobre a prestação profissional dos professores" e elevar a "exigência do ensino em geral".
Mais preocupada com questões de ordem material, Susana Meireles, 32 anos, secretária, queixa-se sobretudo do preço do material escolar. Com dois filhos a frequentar a escola ? um com oito e outro com doze anos -, esta mãe considera que é "muito difícil" fazer face a todas as despesas. Apesar de afirmar que "a escola deveria ser gratuita pelo menos até ao 9º ano" de escolaridade, prefere encarar este esforço como um "investimento no futuro" das suas crianças e encerra expectativas de que ambas possam vir a frequentar a universidade. "Apesar de ouvir cada vez mais pessoas dizer que hoje em dia os estudos já não garantem emprego a ninguém, uma qualificação é sempre necessária". Quando questionada sobre a contestação dos professores, admitiu não estar muito informada sobre o assunto. Garante, no entanto, ter "confiança" no trabalho que é desenvolvido na escola.

"O sentido da nossa profissão perdeu-se no meio de tanta burocracia"

A PÁGINA visitou também uma escola do 2º e 3º ciclo situada nos arredores do Porto - mais concretamente em Matosinhos - e ouviu vozes de desânimo entre os professores. "Penso que, em maior ou menor medida, os professores se sentem cada vez mais pessimistas relativamente ao futuro da profissão. Não há muitas razões para se terem expectativas positivas sobre a carreira", diz Célia Monteiro, 34 anos, professora em situação de contratação provisória desde o início da carreira. E explica os seus motivos: "Nem em termos educativos, porque considero que a política que tem vindo a ser traçada pelos diferentes governos não valoriza nem as escolas nem os professores; nem em termos económicos, já que a situação financeira dos professores, e dos funcionários públicos em geral, tem-se vindo a deteriorar sucessivamente".
Ao seu lado, Mafalda Mota, 37 anos, professora de Português, vai acenando com a cabeça em sinal de concordância e acrescenta que as expectativas políticas que chegou a ter deste Governo estão agora "completamente desfeitas". E não é a situação económica ou de carreira dos professores que pesa na sua opinião. "O sentido da nossa profissão perdeu-se no meio de tanta burocracia. O tempo dedicado àquilo que realmente é importante, a relação de ensino-aprendizagem entre professores e alunos, é cada vez mais escasso", diz, concluindo que, por este caminho, "a qualidade do sistema educativo irá ressentir-se".
Funcionária não docente há 23 anos, F.T. aceitou também falar à PÁGINA na condição de mantermos o seu testemunho sob anonimato. Contando que já passou por três escolas e que assistiu a "muitas mudanças", garante, porém, que nada que se compara aos últimos anos. "Os alunos deixaram de ter qualquer respeito, seja pelos funcionários seja pelos professores. O comportamento de alguns chega mesmo a assustar-me...", refere F.T., afirmando ser necessário mais do que nunca reforçar as medidas de coação aplicadas aos estudantes.
Mas as suas preocupações não se centram apenas na indisciplina dos alunos. O recente anúncio da dispensa de cinco mil funcionários nas escolas deixou-a particularmente apreensiva. "Não sei como é possível. Já somos tão poucos para dar conta de todo o serviço que não percebo como querem tirar funcionários das escolas. A mim já não me falta muito tempo para a reforma, mas inquieta-me o futuro das minhas colegas mais novas", diz com um certo ar de desalento. Razões suficientes, em sua opinião, para dizer que "com a minha idade e por aquilo que vou vendo já deixei de ter expectativas de que as coisas possam melhorar".
Na mesma escola, no entanto, há quem tenha uma visão mais optimista. Manuel Pereira, 46 anos, professor de Matemática, acha que "mais tarde ou mais cedo o poder político irá aperceber-se que não vale a pena estar contra os professores e que o único caminho viável é reconhecer e valorizar o seu trabalho". Espera, por isso, que ao contrário da maioria das expectativas, Maria de Lurdes Rodrigues recue em algumas das impopulares medidas que implementou no ano passado. "De outra forma não auguro muito tempo de permanência no Governo para a ministra, porque acredito que os sindicatos não lhe irão fazer a vida fácil", conclui.
Arredados destes e outros assuntos que interessam sobretudo aos adultos, os miúdos que frequentam o 2º e o 3º ciclo do ensino básico têm outro tipo de preocupações. É o caso de Filipe Leite, onze anos, recém "promovido" à categoria da "escola dos grandes". Para este miúdo franzino, é grande a expectativa de iniciar uma nova etapa na sua vida escolar. "Estou com vontade de começar a escola porque agora vou ter mais disciplinas para estudar e aprender coisas novas e diferentes". Além disso, confessa estar radiante por poder aprender e praticar desportos, algo porque ansiava desde que andava no quarto ano.

"... dou por mim a pensar se a vida não será mais difícil para eles amanhã do que é para nós hoje em dia...".

Aproveitamos também a presença da mãe, Albertina Leite, 38 anos, empregada do comércio, para a questionarmos sobre o que espera ser o papel da escola no futuro do seu filho. "A escola é sempre importante para a formação de qualquer pessoa. Mas hoje em dia a escola, por si só, já não garante uma vida melhor. Às vezes dou por mim a pensar se a vida não será mais difícil para eles amanhã do que é para nós hoje em dia...".
Ao contrário do Filipe, Magda Rodrigues, de treze anos, vai transitar para o oitavo ano mas não se sente particularmente entusiasmada por esse facto. "Tenho uma amiga que já andou no oitavo ano e disse-me que era mais difícil. Tenho medo de não conseguir passar de ano", diz com um ar tímido. Por outro lado, vê com bons olhos a oportunidade de conhecer novos colegas e, quem sabe, poder "fazer novas amigas".
Nessa mesma tarde, no átrio da Escola Secundária Rodrigues de Freitas, no Porto, um grupo de amigos conversa animadamente sobre o regresso às aulas. A oportunidade perfeita para introduzir o tema que ali nos levou. Paulo Correia tem dezasseis anos e pinta de "Morangos com Açúcar". Todo o grupo, aliás, parece saído de um episódio daquela popular série da TVI: eles com o cabelo cuidadosamente despenteado e calças dois números acima do tamanho do corpo; elas uma cópia muito fiel das "Just Girls". Depois de reflectir por um momento, Paulo afirma ter esperança de conseguir melhores notas relativamente ao ano passado. Reconhecendo não se ter esforçado tanto quanto podia, atribui parte do desaire a "muita matéria desinteressante" e à forma como muitos professores dão as aulas, que classifica como "monótona" e "repetitiva".
Ana Teles, quinze anos, concorda em parte com o colega mas sublinha que é um "sacrifício necessário", pelo menos "para quem quer ser alguém na vida". A par da atitude de sacrifício, defende ser necessário "apostar mais numa educação de qualidade para todos os jovens", sem, no entanto, saber especificar concretamente o alcance do seu argumento.
A propósito desta afirmação, Clara Ferreira, também com quinze anos, lembrava que a escola Rodrigues de Freitas havia beneficiado de obras de renovação durante este Verão no âmbito do plano de modernização das escolas portuguesas levada a cabo pelo Ministério da Educação. Uma razão acrescida para se sentir entusiasmada com o novo ano lectivo. Para quem como ela pretende seguir a área de ciências, isto significa um novo alento. "Ouvi dizer que os laboratórios foram modernizados. Os antigos não davam muita vontade de entrar. Pareciam saídos do século passado...", diz, perante a concordância e o sorriso cúmplice dos colegas.
Timidamente arredada do debate, Clara Menezes, dezasseis anos, refere que as suas expectativas se projectam não tanto no curto mas sobretudo no médio prazo. "O meu objectivo é tornar-me investigadora na área da medicina, e sei que para isso vou ter de me aplicar seriamente. No entanto, é preciso que o país crie condições para que os investigadores portugueses possam exercer a sua actividade aqui e não no estrangeiro, como tantas vezes acontece. As minhas expectativas é que no futuro existam condições para que isso se concretize".
De cada vez que abordamos os professores, as expectativas face ao novo ano lectivo centram-se quase invariavelmente na esperança de que algumas das medidas tomadas pela tutela possam vir a sofrer um retrocesso e que o ano conturbado que se viveu não volte a repetir-se.
Eugénia Santos, 44 anos, professora de Português do ensino secundário, confessa estar "saturada" de tanta mudança. "Penso que o ministério tem apostado em medidas acessórias e não no essencial, isto é, em criar condições para que possamos cumprir o nosso papel de educadores com a qualidade que as crianças e os jovens merecem". Dos muito exemplos que poderia citar, explica, destaca sobretudo o novo modelo de avaliação que, na sua opinião, é "contraproducente". "São reuniões e mais reuniões que não contribuem em nada para a melhoria das práticas dos professores e, sobretudo, não elevam a qualidade das aprendizagens dos alunos". Em conversa com colegas, refere que uma parte significativa admite ter perdido a paixão pelo ensino e que a maioria anseia agora pela reforma. "Perante este quadro, não penso que haja lugar a grandes expectativas...".
Fernando Tavares, 42 anos, professor de Inglês, alinha pelo mesmo discurso e afirma que nos últimos anos os responsáveis pela tutela da educação têm vindo a "perder a noção daquela que é a verdadeira natureza do acto educativo e do papel dos educadores". De outra forma, explica, não o teriam praticamente reduzido a "um acto burocrático" cuja finalidade última é "controlar do princípio ao fim a actividade dos professores" e transformar a educação num mero "instrumento de avaliação". Em trinta anos de democracia, diz, "este é o momento mais pessimista que a educação vive", razão pela qual admite não ter "particulares expectativas" para o ano lectivo que se inicia.
Seja porque o ambiente económico e social do país não está propício a grandes entusiasmos, seja porque de facto os portugueses são imbuídos de um espírito pessimista, a verdade é que a maioria das opiniões que tivemos oportunidade de ouvir não diferem muito entre si, mostrando até que ponto o pessimismo parece instalado na comunidade educativa. E o ensino superior parece não escapar a esta tendência.

O ministro Mariano Gago..."foi uma completa decepção"

Teresa Rocha, professora da Universidade do Porto, diz nunca ter assistido a um período tão negro como o que se atravessa. "Não tenho memória de o ensino superior viver tantas e tão graves dificuldades financeiras, que em muitos casos põem em causa o próprio funcionamento das instituições". Na sua opinião, é necessário que o Governo assuma este sector como prioritário para o desenvolvimento do país e invista nele em conformidade. De outra forma, explica, "não vejo de que forma poderemos recuperar o atraso que ainda nos separa dos países ocidentais em matéria de formação". Admitindo que o regresso do ministro Mariano Gago à tutela do ensino superior lhe augurou boas perspectivas, quatro anos depois a sua opinião mudou radicalmente: "foi uma completa decepção".
À semelhança dos professores, os alunos também não parecem muito confiantes. Alberto Raposo, 22 anos, estudante de Letras, avança precisamente com um argumento semelhante para justificar a falta de expectativas que, na sua opinião, atravessa de forma transversal o espírito dos jovens da sua geração. "Não é apenas o facto de ser difícil a situação que vivemos hoje, mas sobretudo a falta de perspectivas de que a situação do país vá alguma vez melhorar significativamente. E isso é arrasador para a sentimento colectivo de um país", explica este jovem, que admite temer pelo seu futuro. "É frustrante ver colegas do meu curso a trabalhar em empregos que não se relacionam minimamente com a nossa área de formação, apenas porque precisam de garantir de qualquer forma a sua subsistência. Não é de estranhar que muitos acabem por ficar a viver com os pais e adiem a sua vida indefinidamente", conclui.

Ricardo Jorge Costa


  
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Edição:

N.º 182
Ano 17, Outubro 2008

Autoria:

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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