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"Vermelho como o céu"

Num belo filme, que dá pelo nome de "Vermelho como o céu", um menino cego guia uma menina por corredores escuros. E uma metáfora de Saramago diz-nos que o grande crime é não cegar quando todos já são cegos. Do "Ensaio sobre a cegueira" ao "Ensaio sobre a lucidez", Saramago não faz outra coisa que não seja lembrar-nos a tragédia edipiana, que nos fala daqueles que, tendo olhos, não vêem, e de cegos que conseguem ver. Em "Vermelho como o céu", somente quando alcançam a saída da platónica caverna, a menina reassume a missão de conduzir.
Visitei uma escola, que me diziam ser "inclusiva".
Numa turma da quarta série, encontrei um aluno "incluído". Copiava as frases escritas no quadro, tão lentamente que, no fim da cópia, a folha foi parar no lixo. Estava empastada em saliva, que ele não conseguia conter na boca. A professora explicou por que razão o "incluído" estava sentado no fundão da sala: Que quer que eu faça? Ele continua com a cartilha da 1ª série. Com mais de trinta alunos já é difícil ensinar normais. Agora, põem-me um deficiente na sala. Eu nunca tive formação para isto. Não dá!
No fundão da sala, o "incluído" tornou-se invisível.
À impotência e frustração de professores junto o desespero dos pais: Na hora de matricular é aquele abraço ? "Nós vamos dar conta da sua filha" ? mas, depois, a minha filha passa o tempo todo passeando pela escola, ou no fundo da sala. Tem treze anos, mas não sabe fazer a tarefa que a professora manda fazer em casa. Ela está na terceira série, mas tem o livro da primeira série e passa as aulas a fazer cobrinhas... A professora é muito simpática, mas... Quando a professora me disse que não sabia trabalhar com a minha filha, eu disse à professora que trabalhasse como trabalhava com todos os outros. Mas a professora disse-me que a Bianca não se sabe explicar...
No decurso de um congresso, alguém que eu muito respeito (e trabalha no MEC), afirmou: A organização em séries não combina com Inclusão. Ela viu, claramente visto, o logro de uma "inclusão de fachada". Mas há quem não queira ver.
Todas as escolas incorporaram a "inclusão" no discurso. Na prática, são escolas inclusivas não-praticantes. A "olhómetro", a tia arriscou a sentença: A sua filha deve ser disléxica. Leve-a a um psicólogo.
Depois de muito dinheiro gasto na psicóloga, a mãe da Rita entregou um relatório à professora. A psicóloga recomendava que se ajudasse a aluna a elevar a sua auto-estima. Na prova seguinte, a vermelho, a Rita recebeu da tia a sua primeira "ajuda": Tens de estudar mais. Assim nunca vais conseguir passar de ano.
A mãe insurgiu-se, protestou. No ano seguinte, a Rita foi transferida para outra escola, porque... "não havia vaga".
O discurso que apela à integração dos diferentes nas escolas ditas regulares não basta. Não basta assegurar o direito à inclusão; é preciso assegurar a inclusão. A sabedoria popular tem sempre razão: o pior dos cegos é aquele que não quer ver. E, porque há quem recuse ver, em nome da inclusão, eu tenho visto cometer actos de segregação.
O Almada Negreiros escreveu: Quando eu nasci, todos os tratados que visavam salvar o mundo já estavam escritos. Faltava apenas uma coisa: salvar o mundo. Quando me fiz professor, todos os tratados que visavam salvar a Escola já estavam escritos. Só faltava salvar a Escola.
Eu sei que estou sempre a dizer o mesmo. Mas não desisto. Algum dia, os professores hão-de compreender por que razão, para certos modos de ver, o céu pode ser vermelho.

José Pacheco


  
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Edição:

N.º 182
Ano 17, Outubro 2008

Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

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