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Senhores de si
Fiz uma volta ao passado. Lembro-me do exacto momento em que descobri como se lê, mas não me lembro das aulas, ou melhor, não me lembro das aulas das outras professoras, pois lembro com nitidez e muito carinho (e até fico emocionada quando lembro), as aulas da Dona Margarida (é a "culpada" pela minha decisão pelo magistério). Hoje, pensando nela, sei que o que a diferenciava era a relação de amor e respeito com o outro, o carinho como tratava os seus alunos, a forma mágica que impunha às suas explicações da matéria. Lembro ainda que, muitas vezes, pensei durante a aula, olhando para ela: é assim que eu quero ser quando for professora. Anos mais tarde, já terminado o curso, fui procurá-la. Já não dava aulas. Foi um reencontro fabuloso e, ali, pude dizer o quanto a admirava e o que ela representava em minha vida. Nunca mais nos vimos, mas ela é uma lembrança preciosa que guardo no meu coração.
Alguns leitores hão-de rever-se no depoimento desta professora. Também devo a um ser iluminado ? mestre no dito "ensino tradicional" ? a decisão que me levou ao magistério. Lograva conciliar duas características aparentemente incompatíveis. Era exigente, pois a escola é estudo e esforço. Transbordava afecto, porque uma escola sem vínculos afectivos é um redil de eunucos.
Pressinto a necessidade de formular duas advertências. O professor que me "desviou" da Electrotecnia para a Pedagogia era um praticante convicto do que se convencionou chamar "ensino tradicional". Durante alguns anos, também eu fui um professor "tradicional". E orgulho-me de o ter sido. Preparava as minhas aulas com rigor, acreditava ser aquele o melhor modo de ensinar. Isto, antes de conhecer outros modos?
A inovação assenta na tradição, pois nada se pode construir no vazio, sem sustentação. A inovação não prescinde da tradição. Não se deite fora o bebé com a água do banho. Tenho horror pelas modas pedagógicas. Afasto-me dos "teoricistas", que estabelecem dicotomias maniqueístas entre "tradicional" e "inovador". Faço vade retro aos ingénuos e aventureiros "praticistas", que negam a importância da repetição, da memorização e de outra utensilagem "tradicional". E, quando me perguntam qual é o melhor método, eu respondo, invariavelmente: É o que resulta! Esta resposta tem muitos pressupostos. Talvez os recupere numa outra altura, porque, agora, quero falar de afectos.
O que fez com que o professor Lobo (era esse o seu nome) alterasse as suas práticas, ao cabo de dezenas de anos de "tradicional puro e duro", foi a pergunta que um aluno lhe dirigiu: Professor, porque me castigas? Porque não me ensinas? O professor Lobo passou por uma profunda revisão de vida ? escutei-o, numa das suas últimas palestras, em 1969 ?, transmutou o autoritarismo (típico das escolas da Ditadura) em autoridade. Colocou, no lugar antes ocupado por uma "pedagogia musculada", uma afectuosa presença. Os alunos passaram a chamar-lhe "mestre" e a tratá-lo na segunda pessoa do singular, numa saborosa mistura em que o afecto não se confundia com languidez.
Quando falo de afecto, eximo-me de um idealismo piegas, para o abordar como Freinet o entendia: para aprender, transformar e viver é preciso fechar as fronteiras entre o intelectual e o afectivo, entre o brincar e o desafio.
No seu tempo, o professor Lobo foi alvo de depreciação e de calúnias, tal como Freinet o foi. Creio ser sina dos inovadores esta de serem vilipendiados e perseguidos.
Portugal deveria conhecer e orgulhar-se dos anónimos construtores de saberes e de afectos, como o professor Lobo. Deveria celebrar a memória de mestres como Agostinho da Silva. Os professores portugueses são herdeiros de um património comum, que deveriam conhecer. Porém, assim como Agostinho da Silva foi levado ao exílio, no Brasil, muitos outros eminentes portugueses se exilaram da mediocridade (ainda hoje) reinante. Nem precisarei de evocar Espinosa, ou Jacob Pereira. Basta a diáspora nossa contemporânea. Eduardo Lourenço está em França. Saramago vive numa jangada de pedra.
Em 2005, não foi comemorado o centenário da publicação de duas obras fundadoras do pensamento pedagógico. Provavelmente, irá passar sem referência o terem decorrido cem anos sobre o nascimento de Agostinho da Silva, o mestre que disse que professor é o que sabe e o que ama.
O professor precisa conhecer as necessidades do aluno, tanto as cognitivas quanto as afectivas. Precisa conhecer os seus sonhos e frustrações. Porém, como afirma Giroux, muitas escolas separam o desempenho da expressão emocional e cumprem o que consideram a sua finalidade mais explícita. Como poderá um professor, que "dá aulas" a mais de cem alunos, conhecer a pessoa do aluno número17 da turma G do 8º ano?...
É, sobretudo, necessário que o professor afectivamente se conheça. Este conhecimento gera segurança, permite aos professores serem senhores de si. No seu tempo, o professor Lobo era senhor de si. Era mais o que era, do que o que fazia, ou dizia. Não mitigava os afectos. Manifestava-os. Estava ali, inteiro, no dia em que o conheci. Por isso, pude encontrá-lo. Foi na luminosa verdade daquele ser que eu encontrei o meu caminho.
Para que a amorosa presença dos mestres de antanho contagie as escolas deste início de século, peço aos professores que escutem o mestre Pestalozzi, duzentos anos depois: o meu coração estava preso às crianças, a sua felicidade era a minha felicidade, a sua alegria, a minha alegria ? elas deviam ler isso na minha fronte, perceber isso nos meus lábios, desde manhã cedinho até tarde da noite, a cada instante do dia.

  
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Edição:

N.º 170
Ano 16, Agosto/Setembro 2007

Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

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