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Em busca do ritmo perdido

Poderia a Alice acreditar que, naquele tempo, alunos e professores andavam a toque de campainha?

Como o tempo passa! O milénio completou uma década e já lá vão três anos sobre o dia em que entreguei um macinho de cartas a uma Alice que, entretanto, aprendeu a ler. E que não pára de me pedir contas de uns termos eruditoides que eu deixei escapar no calor da narrativa.
Não lamento as horas de falatório com a Alice ? Afinal, para que servem os avós? ? e, como todo o avô que se preza, gostosamente me penitencio do recurso a vocábulos mais elaborados e esclareço o sentido das passagens mais rebuscadas das cartas. Para um avô ávido de um pretexto para uma boa conversa de avô para neta, é delicioso tê-lo, assim, à mão de semear. Os nossos diálogos são como um semear de palavras que encurtam o fosso geracional e me permitem continuar a aprender com a Alice, consciente de que um avô jamais chegará sequer a intuir mistérios que os netos hão-de desvendar.
Escrever para adultos é fácil. Difícil é explicar a uma criança ? em linguagem de gente, claro está! ? o sem-sentido da Escola que tivemos até ao princípio deste século. Relendo as cartinhas com a Alice, juntei-lhes algumas notas de rodapé pretensamente clarificadoras. Até cheguei a ensaiar a feitura de um glossário. Acumulei tantas e tão díspares explicações, que até pensei reuni-las em volume, aceitando o desafio que um amigo me colocou: o de elaborar uma espécie de ?Dicionário de Absurdos??
Como é fácil de ver, tratar-se-á de uma obra monumental, dada a quantidade de entradas possíveis. Conclusão óbvia: este não poderá ser um empreendimento solitário. Estou a pensar convidar mais alguns amigos que, nos conturbados tempos do princípio deste século, açoitavam os ancestrais hábitos de uma Escola autista e obsoleta.
Dessa Escola restam somente vestígios. Mas a Alice é uma jovem avisada e previdente. Quer tirar tudo a limpo, não vá o diabo tecê-las. Num dos muitos anos de estudos que ainda terá pela frente, poder-lhe-á sair na rifa um mestre fóssil como o vizinho do rés-do-chão, professor na casa dos cinquenta e nostálgico ?dos tempos em que a escola era escola, do tempo em que se aprendia a ler e a fazer contas de dividir por dois algarismos logo na segunda classe?
A Alice parece uma máquina de fazer perguntas: Mas porquê, avô? Porquê? A Alice faz as perguntas fundadoras de qualquer reflexão sobre a Escola. Perguntas que, em recuados tempos, poucos ousavam fazer, por quase todos se terem esquecido de que também foram crianças, que também passaram pela idade dos porquês. As perguntas da Alice são perguntas do senso comum, que não deixam de ser perguntas de bom senso. A pequena não se cansa de me interpelar sobre usos e costumes da Escola de antigamente. Não lhe escapa mesmo nada. No intervalo da manhã de Sexta-feira, escutou uma conversa entre professoras (?por acaso?, segundo me disse) e sobressaltou-se com uns zunzuns?
- Ó avô, é verdade que, no teu tempo, as escolas tinham campainhas penduradas nas paredes?
- É verdade, Alice.
- E para que serviam as campainhas?
Como se poderá explicar a um ser inteligente como a Alice o que não tem explicação? Poderia a Alice acreditar que, naquele tempo, alunos e professores andavam a toque de campainha? Será possível que a Alice entenda as razões pelas quais havia um toque para ir para a aula de Matemática, outro toque que mandava ir para a aula de Ciências, outro toque que reencaminhava corpos para uma aula de Inglês, e por aí adiante?? Pensando em voz alta, murmurei a palavra ?aula?. Ó palavra que disseste!...
- O que eram ?aulas?, avô? ? disparou a Alice.
- Eu depois, explico? - respondi, tentando ganhar tempo, pois não estava certo de conseguir explicar à Alice o sentido de velhos artefactos como ?aula?, ?tempo lectivo?, ?carga horária?, ?classe??
- Está bem, tu depois explicas. Olha que eu não me esqueço! Mas juras que é mesmo verdade que, quando as campainhas tocavam, os meninos tinham de entrar, ou sair, ou chegar, ou ir embora??
- É verdade, Alice.
- Mesmo que não lhes apetecesse? ? replicou.
- Sim. Mesmo que não quisessem. Mas não vês que isso era antigamente, minha querida? Não vês que na tua escola já não é assim?
- Pois? mas eu ouvi dizer que ainda há algumas escolas onde?
- São poucas, que eu sei. Sossega! ? E para lhe aquietar o espírito, contei-lhe um episódio recente, cujo protagonista ? o Egídio ? é a prova viva de que, se não desistirmos de pensar que os professores são pessoas inteligentes, os milagres acontecem.


  
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Edição:

N.º 152
Ano 15, Janeiro 2006

Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

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