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La porte-plume redevient oiseau

O Manoel de Barros, no seu ?Livro Sobre Nada?, diz-nos que: ?há histórias tão verdadeiras que, às vezes, parece que são inventadas?. A história da Ana é uma delas. Contarei ao Marcos episódios da vida dessa maravilhosa mulher. Começando pelo princípio ? os velhos têm súbitos caprichos e, hoje, apetece-me ser redundante ?, situemos o primeiro episódio num dia em que a Ana foi à escola.
É minha obrigação referir que todas as aspas enquadram e reproduzem palavras da Ana, religiosamente escutadas, num saboroso exercício dessa tão difícil arte da escutatória, de que o Rubem nos fala. O Rubem recorre ao talvez neologismo ?escutatória?, por oposição aos excessos de ?oratória? (quem nunca leu o Rubem não perca mais tempo). Serão muitas as aspas de citar a Ana, pelo que este texto (poderei dizê-lo com toda a propriedade), será de sua autoria. Eu apenas o darei a conhecer.
A história fez-me recordar um conhecido poema do Jacques Prévert, que dá pelo título de ?page d?ecriture?. Àqueles leitores que, eventualmente, não conheçam o poema (quem nunca leu não perca mais tempo), direi que nos fala de uma criança-aluno que, perante a monotonia da aula, dela se ?ausenta?, conduzido pela imaginação. E termina deste modo: ?l?encre redevient eau / les pupitres redeviennent arbres /la craie redevient falaise / la porte-plume redevient oiseau».
Na história da Ana, uma mosca substitui o pássaro do poema do Jacques, mas vem a dar no mesmo. No tempo em que Jacques e Ana passaram pelo ofício de alunos, todas as crianças saudáveis fugiam à monotonia das aulas pelas frestas que a imaginação lhes oferecia. Se a Ana leu o poema, não sei. Mas descreveu-me o último quarto de hora de uma das suas aulas tal e qual o contei ao Marcos. Passo a palavra à Ana?
?Olho o relógio. Graças a Deus, já só faltam quinze minutos para a campainha tocar. O professor caminha lentamente entre as filas de carteiras, falando, falando?. Os alunos estão imóveis, quase de mármore, a olhar os livros com olhos desfocados. O silêncio é ensurdecedor. Só passaram cinco minutos. Tenho os músculos tensos. Concentro-me no que vou fazer, quando a campainha tocar: pegar na mala, vestir o casaco, e porta fora!
Escuto o arfar nervoso da minha colega de carteira. E eu quase não consigo respirar. Os nós dos dedos estão brancos do esforço que faço sobre a caneta. Uma mosca poisou na minha carteira. Tem umas lindas asas. Limpa-as, asseadinha que é. Será macho ou fêmea? É difícil saber. Já vi duas moscas coladas, mas nunca vi o sexo da mosca. Talvez, se olhar mais de perto? Oh! Fugiu! Quem me dera ser mosca!
Os meus olhos voltaram-se para o mostrador do relógio. Começo a contar os segundos e o meu pé marca o ritmo: três? dois? um? O quê?!! Que aconteceu? A campainha não tocou! DRRIIIIM! As estátuas ganham vida, as escadas são torrentes de vida reprimida, as portas sangram vida?
Largo a mala no meio do quintal. Como um raio, subo à minha árvore favorita. Vejo-me, saboreando frutos, no balancear dos ramos. A brisa põe flores do campo nos meus cabelos?
Abro os olhos. Como é possível que dez minutos possam durar uma eternidade??
.
Estava no auge da história e vejo o Marcos com olhos de quem quer fazer perguntas. Interrompi a narrativa.
- Ó avô, a escola do teu tempo também era assim?
Um avô não pode mentir. Não houve outro remédio senão dizer-lhe a verdade. Que era mesmo assim: com aulas, campainhas, moscas e pássaros?
- E a escola para onde eu vou? Como é? Diz lá, avô! Também é assim? Diz, avô!...
Não respondi. Não tive coragem de lhe dizer que a escola que o espera é idêntica, em quase tudo, à escola da Ana, à escola que foi minha, à do Jacques, à dos meninos do século XX, e também dos meninos das escolas que o século XIX conheceu?
Se a prática de um dentista não acompanhasse a evolução da produção teórica no campo da Medicina, ainda hoje nos curvaríamos sobre uma bacia de barbeiro, para que o dentista nos arrancasse os dentes com uma tenaz. Se um engenheiro recusasse ler e pensar, se prescindisse do recurso à literatura científica e à experimentação, ainda hoje viajaríamos em carroças puxadas por asininos. Ao desenvolvimento das duas ciências correspondeu a mudança, a inovação. A complexidade e a sofisticação de processos é tal nessas profissões, que ninguém ousa questionar o saber e a prática de um médico, ou de um engenheiro. E que dizer da profissão de professor?
É muito frequente lermos artigos, invectivando as chamadas ?novas pedagogias?, atribuindo-lhes a responsabilidade por todos os males que afectam o sistema. Dá vontade de perguntar aos autores desses artigos: quantas escolas adoptaram as famigeradas ?novas pedagogias?? Se alguém souber onde se esconde alguma dessas escolas, que faça a bondade de me facultar o endereço. Ainda irei a tempo de evitar que o meu neto passe pelos padecimentos por que a Ana passou.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 144
Ano 14, Abril 2005

Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

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