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Um sabiá me contou?

Algures, em 8 de Setembro de 2007

Querida Alice,

Na última carta, falei-te de um Pássaro Encantado, que me fez atravessar o mar e me conduziu a lugares onde o mundo retoma a forma prometida de um ?novo mundo?. Foi no eco dos seus passos que encontrei um sabiá de canto suave.
No país do Sabiá, o teu avô desfrutou de novos sabores e significados. Foram doces as horas conversadas no afago de subtis olhares tranquilos. Quisera eu que fossem mais longas. Porém, tal qual a Cindarela da história que o teu avô te contou, o Sabiá deveria voltar do lugar de onde partiam pássaros metálicos para a cidade dos dirigíveis que voavam em todas as direcções, à altura das janelas.
Com o Sabiá partilhei memórias de uma Escola de que, certamente, estranharás os contornos, mas que ainda era a mesma no princípio do século em que vieste ao mundo. Era uma Escola que procurava justificações, mas que vivia amarrada a superstições. Contava mais de duzentos anos, estava velha, rabugenta. Uma fada má a tinha fadado para encerrar jovens almas censuradas entre muros altos.
O Sabiá me contou que audazes aventureiros (Tolstoi, Neill...) fundaram reinos de fantasia, que alguns ?cavaleiros andantes? investiram contra o monstro, mas que as lanças se quebravam na dura carapaça. Contou-me o Sabiá que pássaros românticos (como Pestalozzi, Ferrer?) assumiam a denúncia de que a Escola estaria, há muito e sem se dar conta, imersa numa profunda contradição. Vieram pássaros sábios de Medicina (Decroly, Montessori...) e formularam diagnósticos. Mas, no tempo em que os microscópios permitiam enxergar micróbios, ainda havia quem aconselhasse o recurso a rezas e mezinhas. A Escola recusava o espelho onde se mirar. Precisava de se alimentar da ausência de imagem, de recusar uma memória inquietante.
Até que foi chegado o tempo dos profetas (Rogers, Freire?), um tempo em que os guardiães de obsoletos templos atiravam hordas de medonhas criaturas contra qualquer nicho onde pressentissem despontar o sonho de pássaros que recusassem voluntários suicídios de asas. Contou-me o Sabiá que algumas dessas criaturas paravam a investida e se prostravam na contemplação da transparente ternura da profecia, mas que poderosas sombras corroíam as pontes que davam passagem à utopia.
Era bem verdade. No exacto tempo em que completavas os teus dois primeiros anos, as gaivotas da escola das aves sentiam, mais uma vez, o sabor amargo da perfídia que ofuscava o brilho deste planeta de céu de anil.
Ítalo Calvino ? um pássaro de rara beleza e vida breve ? imaginou Marco Polo descrevendo perante Kublai Kan uma ponte, pedra a pedra. Marco Pólo insistia na ideia de que uma ponte não é sustida por esta ou por aquela pedra, mas pela linha do arco que elas formam. Sem nada entender, o poderoso Kublai Kan, disse que apenas o arco lhe interessava e ordenou a Marco que parasse de falar de pedras. Marco Pólo respondeu que sem pedras não há arco...
Os poderosos de todos os tempos sabiam que toda a ponte tem a sua pedra angular, mas ignoravam que uma pedra sozinha não segura um arco. Neste segredo residia a força da ponte. Poderia vergar sob o peso de uma moral caduca feita de tabus e superstições, mas não cedia. E, se havia quem quisesse destruir o acto criador das gaivotas da escola das aves, as pontes para o futuro da Escola resistiam na sólida consistência das pedras fundadoras.
Talvez se torne mais fácil para ti, que vives outros tempos, compreender por que motivo, no tempo em que nasceste, pássaros sem alma roubavam primaveras às frágeis gaivotas e lhes impunham céus cinzentos. E também compreender que as pontes servem para unir margens, ainda que tanto mar haja para cumprir. E também que, tal como as águas cortadas vão correr por outro lado, ali, logo em frente, a esperar pela gente, o futuro está.
Posso dizer-te hoje, querida Alice, que os dias em que tu ensaiavas os primeiros sons e os primeiros passos, foram para o teu avô dias de dúvida e ansiedade. Mas, nesse tempo, a par da melopeia do chapim-real, que quebrava o silêncio das noites, a memória de futuros encontros com o doce cantar do Sabiá dava alento às gaivotas desoladas e exaustas.
Naqueles fins de tarde de dias incertos, no bater de teclas de uma máquina usada no tempo em que nasceste (chamada computador) eu encontrava arautos de prodígios e reencontrava o significado de ?país irmão?. Ao ritmo de um digitar que diferia do ritmo de pensar, eu recolhia os ecos de um S.O.S. solidário que consolidavam pontes de fraternidade. E, contornando a imensa curva norte-sul, embalado no suave flutuar de aragens atlânticas, o Sabiá celebrava um canto que ninguém conseguia sufocar. Pois, se a ponte resistisse, não importava que a aquarela da nossa ténue vida se fosse?descolorindo.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 128
Ano 12, Novembro 2003

Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

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