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A lição do pássaro Dodó

Algures, no dia 5 de Setembro de 2007

Querida Alice,

Há muito, mesmo há muito tempo, vivia nas praias de Madagáscar uma espécie de cisne, um pássaro meigo de nome Dodó. Era uma ave estranha pois, contrariamente a outras espécies, não temia a proximidade dos homens. E, por não os temer, esta espécie de pássaros foi exterminada. Homens ignorantes e cruéis ? que também os havia nesse tempo? ? divertiram-se a persegui-los e matá-los.
Um livro que nos fala das aventuras de uma outra Alice descreve o paradoxo do pássaro Dodó. Depois do dilúvio causado pelas suas próprias lágrimas, Alice chega a uma praia onde encontra vários animais, todos eles encharcados e com frio. O pássaro Dodó sugere que façam uma corrida para se aquecerem. Todos começam a correr, cada qual para seu lado, cada qual escolhendo o seu próprio percurso.
É fácil de ver que todos os percursos eram diferentes, dependendo da vontade e gosto de cada um dos animais. Quando, no final da corrida, todos estavam quentinhos e a salvo, perguntaram ao pássaro Dodó quem teria sido o vencedor. Como cada um correu como e por onde quis, o pássaro Dodó declarou que todos tinham sido vencedores das suas próprias corridas.
Raros serão os seres humanos que entendam a subtil sapiência dos pássaros. Mas eu sei que tu, querida Alice, compreenderás a lição. Sei que os teus pais te ensinaram a escolher caminhos. Imagino que os teus caminhos se hão-de cruzar com outros caminhos, com ou sem rotas definidas. Sei que, nos teus seis anos de idade, não estás condicionada por sentidos obrigatórios, nem contaminada pela vertigem das ultrapassagens. Saberás inventar venturosos mapas, respeitando os que optarem por inventar os seus.
Esta ideia da divergência de percursos, sejam eles itinerários paralelos ou alternativos, é tão antiga como a imposição das veredas por onde correm à desfilada e em atropelo jovens pássaros aprendizes da perseguição de fugazes pódios e honrarias. O mais certo será que, nas tuas deambulações, vejas passar pequenos gansos recém-saídos do ovo, seguindo um homem como se fosse o pai-ganso. Um sábio chamado Lorenz fez essa experiência, e a Etologia diz-nos haver pássaros que seguem o bando que lhe trouxer maiores vantagens, ou que mudam de rumo, ao sabor das aragens.
Os antigos romanos observavam o voo das aves, neles decifrando desígnios e presságios. Atentas à necessidade e à possibilidade de propiciar diferentes viagens às jovens aves aprendizes, em muitas escolas de voar do início do teu século, também os aspirantes a gaivotas despendiam parte do seu tempo na observação de cada frágil bater de asas. Depois, ensaiavam a interpretação das vontades de voar ? sempre diferentes de pássaro para pássaro ? e desenhavam esboços de aéreos trajectos, que cada pássaro aprendiz reelaborava segundo o seu ritmo e a sua deliberação.
Em discretos ninhos, no mais recôndito das escolas dos pássaros, havia mestres que se arriscavam a questionar a tradicional pedagogia do voar. Essas gaivotas eram cuidadosas, procuravam não dar nas vistas, mas nem sempre estavam prevenidas contra as investidas dos pássaros porquenãos (recordar-te-ás, querida Alice, de que os porquenãos se chamavam assim por consideraram que não era assim... e pronto!), e eram o alvo preferido de aparências de pássaros. Aparências, porque dispunham de asas, mas não eram aves. Voavam, mas pássaros não eram. Vampiros se chamavam.  
Houve uma gaivota mutante de nome Zeca Afonso, que foi perseguido por vampiros do seu tempo. Foi proibido de ensinar o voar de modo diferente. Porque, lá do fundo de escuros e inacessíveis antros, os vampiros vigiavam e sufocavam mestres e escolas. Durante muitos anos, os vampiros exauriram «quem lhes franqueasse as portas à chegada». Nos primeiros anos do teu século, os vampiros ordenavam aos porquenãos que ensinassem a voar a todos como se de um só se tratasse, como se cada pássaro não fosse um ser único e irrepetível. «Batendo as asas pela noite calada», apoiavam os abutres e papagaios detractores da arte das gaivotas, em pérfidas investidas contra tudo o que pressentissem divergente. «Com pés de veludo», chegaram mesmo a publicar éditos de interditar voos vários.
Naquele tempo, as gaivotas a tudo resistiram com suprema paciência, pois tinham por aliados os pais das aves aprendizes, e por sonho o fazer das jovens aves seres mais sábios e mais felizes.
Quero que saibas, querida Alice, que o mesmo Deus que punha a mesa para os pássaros velava pela conservação dos vampiros. O Deus das gaivotas era o mesmo dos vampiros, e sabia que, se os vampiros desaparecessem, alguma coisa se perderia e «o mundo ficaria mais pobre»? Mas, na sua omnisciência, também sabia que os vampiros passariam e que o sonho ficaria à espera de despertar numa outra gaivota, mais adiante.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 125
Ano 12, Julho 2003

Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

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