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"Navegar é preciso?"

PRÁTICA E TEORIA

O semestre já ia adiantado, mas as aulas de História da Pedagogia não desencalhavam da Antiguidade Clássica. A sebenta ia até ao Platão, mas a feminina intuição da Brígida guiava-me nas surtidas à biblioteca (que era mais um emaranhado de livros e teias de aranha), por atalhos de índices e bibliografias, até à exacta página ou capítulo. Numa errância sem fim, bisbilhotávamos armários, passávamos as estantes a pente fino, em busca de novidades. Porém, a mão censória há muito dera sumiço a tudo o que fosse passível de afectar as mentes cândidas dos futuros professores. Até que, num fim de tarde de um Abril dos primórdios de setenta, se foi toda a gente embora e nós ficámos fechados na Escola do Magistério (já estou a ver os espíritos mais lúgubres congeminando aventuras, mas saibam os maliciosos que nunca a nossa relação confundiu a comunhão intelectual com a tentação de partilharmos algo mais?)
Ao fundo de um armário de que se perdera a chave, encontrámos uns livrinhos que um apiedado censor terá poupado à devassa. Vagabundeando por páginas amarelecidas, ficámos a saber os saberes que nas aulas nos ocultavam. Convivemos com personagens até então desconhecidos: Faria de Vasconcelos, Ferrer? Horas a fio, devorámos as palavras dos avatares de uma "Educação Nova", que sobreviveu confinada a um conjunto restrito de experiências e que, no nosso tempo do Magistério (e muito para além do contexto histórico em que emergiram!) se mantinha actual.
Apercebemo-nos de que os nossos mestres se esforçavam por nos fazer crer que a intenção libertadora da Educação Nova não passava de uma utopia irrealizável. De posteriores surtidas ficou-nos a paixão por Erasmus e Fénelon, através dos quais iríamos chegar ao convívio de proscritos como Elise Michel ou Proudhon. Enquanto não se esgotava a pilha da lanterna, vasculhávamos febrilmente os armários empoeirados, tropeçávamos num Rosseau ? que um dos nossos zelosos mestres cognominava de ?espírito pérfido? ? descobrindo que não teria sido o Emílio o inspirador directo da Educação Nova, dado que, pelas nossas contas, entre o filósofo e o início do movimento mediaria mais de um século. Ainda que, depois de feitas as contas ? e nós, professores primários à antiga, que bem sabíamos fazer contas! ? concluiríamos, ao cabo de muitas horas de furtiva leitura subtraídas às aulas de Legislação e de Didáctica B, que o Rosseau, que ficara a levedar cem anos, viria a ser recuperado nos primórdios do movimento da "Educação Nova", que tínhamos descoberto há uns meses.
A Brígida era a vedeta do curso. Desenvencilhava-se a preceito de trabalhos práticos e exames. Era apontada pelos seus mestres como uma ?promessa do ensino?, diziam estar ?fadada para grandes voos?. Foi a minha companheira de aventuras. Toda ela era sede de descoberta. Cheguei a adorar mais a Brígida que a Senhora de Fátima e nunca duvidei do idealismo que derramava. Mas a vida reserva-nos surpresas?
Acabado o curso, foi cada qual para seu lado, a cumprir o destino de educar as novas gerações. Reencontrei-a no fim dos anos setenta, nos corredores da antiga Direcção do Distrito Escolar. Conservava nos olhos resquícios da fogosidade de outrora e na boca um entusiasmo esmorecido. Após algumas palavras de circunstância, de ficar a saber que havia casado recentemente e que eu ?continuava o mesmo?, quis saber novidades...
? ?Sabes, Zé, não sei onde ficarei colocada no próximo ano. Ando de escola para escola. Como professora agregada, não devo mudar o que quer que seja. Eu bem gostaria de pôr em prática aquelas coisas que aprendemos? Lembras-te?...?
Lembrava-me? e era isso que me punha confuso. Também eu andara de escola em escola, também eu passara por cortes de gado adaptadas a salas de aula, também eu tivera turmas de mais de quarenta alunos. Mas isso não dissipara o sonho. 
Os nossos caminhos voltaram a cruzar-se ia a Brígida nos 36 anos e já era professora efectiva. Desabafou:
? ?Ó Zé, eu sei o que estarás a pensar? Mas eu tenho filhos pequenos para criar! (Como se eu não soubesse! Como se eu os não tivesse!). Primeiro estão os filhos! Sobra-me lá tempo! Eu bem gostaria de entrar num projecto, mas tu não vês a vida que eu levo? Às quatro, ponho o meu Márcio na piscina. Às cinco e meia, a Marina sai do Instituto de Inglês e o meu marido, a essa hora, ainda está no escritório. Ele ainda me faz o favor de ir buscar os miúdos enquanto eu preparo o jantar. E, depois, uma casa dá muito trabalho. Eu tenho lá tempo para essas coisas! Lá para diante, quando eles forem mais crescidinhos, logo se verá.?
Voltei a encontrá-la, à entrada dos cinquenta, uma mulher madura com alguns cabelos brancos mal disfarçados. Frequentava um curso de complemento de habilitações, ?daqueles que a gente só lá tem de ir um ou dois dias por semana e, assim, não se perde tanto tempo para subir de escalão? (Brígida dixit). Nada lhe perguntei que a pudesse contristar. Mas ela foi directa ao assunto:
? ?Já sei o que me vais perguntar. Continuas a ser um lírico, mas eu já me deixei de fantasias. No nosso tempo, éramos novos, cheios de energia. Com o tempo a gente começa a amadurecer. O melhor é deixar tudo como está. No nosso tempo, o papel do professor era muito claro, tinha o conhecimento e transmitia-o conforme os meios que possuía. Os alunos que conseguiam acompanhar eram bem sucedidos, os que não conseguiam repetiam as vezes necessárias para aprender. E assim é que estava bem??
E rematou:
? Olha, agora, o que eu quero é ir para a reforma. Agora, o que eu quero é sossego.?
Confesso que, em nome dos velhos tempos do Magistério, o único sentimento que as suas palavras me suscitaram foi uma grande ternura. Naquela Brígida descolorada e vencida eu vi reflectida uma imensa legião de desistentes. Há-de gozar a reforma até lá para os cem e há-de morrer em paz com a sua consciência.
Há já quase um século, Almada Negreiros dizia que, no tempo em que nasceu, todos os tratados que deveriam fazer mudar o mundo já tinham sido escritos. Só faltava uma coisa: mudar o mundo. Quando arriscaremos todos um ?golpe de asa?? Quando partiremos todos do que somos para sermos algo mais? Sem prescindir do debate sobre a necessidade de mudança, quando mudaremos? Não estou a sugerir um corte radical com a tradição, em nome de caprichos modernistas. Debaixo do Sol, não há coisas novas, mas feitas de uma nova maneira: ?non nova, sed nove?. Tudo se transforma, assume diferentes contornos. O que não pode é haver mudanças no fazer sem uma concomitante transformação no modo de pensar?
No regresso a casa, abandonei-me a metafóricas lucubrações de auto-estrada. A Escola andou meio século como um barco à deriva e encalhou à entrada para um porto de promessas. Houve quem se amotinasse. Houve quem abandonasse a decrépita embarcação e empreendesse novos rumos. Mas há também quem continue a consultar velhas cartas de marear, indiferente ao impacto das ondas que destroçam o casco enferrujado. A Brígida finge indiferença (em nome dos velhos tempos, eu recuso acreditar que seja indiferente) perante o fragor das vagas contra um casco imóvel. Se, entretanto, o que resta do casco agonizante não for devastado por uma qualquer tempestade, a Brígida repartirá o tempo de uma viagem parada entre o varrer do porão e umas braçadas na piscina da classe turística? enquanto não for chegado o almejado momento do desembarque.
Vim a saber, através de um amigo comum, que os ventos resultantes da intempestiva passagem da Brígida pelas primeiras águas estagnadas provocaram ?ondas? e enjoos. A tal ponto que, ao invés de segurar o leme e de corrigir o rumo, a Brígida desistiu de navegar.


  
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Edição:

N.º 124
Ano 12, Junho 2003

Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

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