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A casa do filho
Há muitos anos, quando ouvia alguém referir-se com desdém a uma qualquer escola ou a classificar um qualquer professor de ?lírico? ou de ?lunático? (só para referir as mais gentis e eufemísticas classificações...), eu inquiria, discretamente e sem manifestar excessiva curiosidade (para não levantar suspeitas), de que escola ou professor se tratava. Recolhida a informação, logo preparava a viagem.
Ávido de prodígios, pesquisador de almas inquietas, fui num distante dia de Outubro em demanda da professora Lúcia e da sua tão comentada escola de lugar único, escondida num vale, para além do Marão. Depois de muitas voltas por estreitas estradas com alguns vestígios de alcatrão, estava quase decidido a voltar para trás, quando deparei com uma placa indicando a proximidade da aldeia. Segui por um caminho de terra onde mal passava um carro. O receio de encontrar alguma viatura em sentido contrário foi-se esvaindo à medida que me aproximava da aldeia e talvez por efeito do sossegado silêncio entre montanhas, pontuado pelo chilrear dos pássaros. Ia tão distraído que, no desfazer de uma curva, por pouco não fui de encontro a uns cornos fora de mão.
Ei! Ei, Bonita! Arreda! ? gritou uma velhinha, de aguilhão em punho, empurrando a vaca para o rego de água que bordejava o caminho.
Pedi desculpa pela perturbação gerada e perguntei à senhora se conhecia a escola e se ainda ficava longe dali.
Não senhor, meu senhor, é mesmo aqui pertinho. Não tem nada que enganar. O senhor vai por aqui, sempre neste correr. Quando der com a casa do meu filho, meta a descer para o lado esquerdo. A escola é logo ali à beirinha...
?Quando der com a casa do meu filho?... Retomei a marcha com o mesmo pressentimento de me haver perdido, mas a desconfiança desvaneceu-se ao deparar com ?a casa do filho?. Era a única, ao fundo do caminho. E lá estava, efectivamente, a azinhaga, do lado esquerdo, envolta numa latada, uma espécie de túnel, ao fundo do qual vi ?a luz?. A singela construção do ?plano dos centenários? iluminava-se com o riso das crianças. A gélida sala de aula amornava-se com o calor de gestos sábios e transbordava de doce ternura. Havia mais pedagogia naquele lugar ermo do que em todos os compêndios que eu já tinha lido. Em escassas horas, aprendi mais das crianças e dos professores do que nos cursos de formação.
Compreendi por que razão certos docentes recorriam a uma abundante adjectivação ? ?líricos?, ?lunáticos?, ?utópicos? e outros epítetos bem menos lisonjeiros... ? quando se referiam a professores como a minha amiga Lúcia, a Georgina, o Lobo, a Angélica e muitos outros, que sinto orgulho de ter conhecido e até de contar entre os amigos. Alguns já faleceram, outros estão à espera que alguém os descubra. E eu insisto numa busca que não cessa, por ter sido nessa busca que me encontrei e encontrei razões para me manter professor. A esses ?utópicos? devo quase tudo o que de bom possa ter e ser.
Voltei da escolinha da minha amiga Lúcia com mais alento e vontade de não desistir. Voltei mais consciente do muito que teria de me melhorar e do quanto teria de aperfeiçoar a minha prática.
Voltei à minha escola com uma ?fé pedagógica? mais fortalecida. Porque, à semelhança dos magos que se deixaram guiar por uma estrela até uma claridade que rompia as trevas de uma gruta ou casebre, eu mantivera a crença de encontrar a casa de um filho de uma velhinha, marco de referência de uma escola que irradiava uma luz perturbadora das trevas em que todo um sistema estava imerso. A analogia talvez resulte da proximidade da quadra natalícia e do facto de estas fugazes iluminações se assemelharem a estrelas cadentes que, por desistência ou desaparecimento dos autores, se transformam em buracos negros. Trágica sina de um sistema que não merece os professores que tem e que permite que os raros focos de orientação se apaguem.
Não há semana em que não receba uma ou outra mensagem de esperança ou de desespero de professores que se recusam a deixar de o ser, ou resistem a ?ser como todos os outros?. À semelhança da Lúcia e de outros ?líricos? e ?utópicos?, são depreciados, caluniados, perseguidos, ou ignorados e  remetidos para uma solidão compulsiva, em escolas de lugar único como em escolas habitadas por dezenas de professores.
Quero dar a palavra a uma Liliana, generosa professora de nova geração, que resiste aos convites do fácil e do cómodo. Tem a palavra a Liliana: ?As incertezas, as dúvidas e as lágrimas ainda me perseguem. Os dias passam de uma forma alucinante e sinto-me cada vez mais infeliz. Nalguns dias chego mesmo a duvidar se esta será a minha vocação... Sinto-me tão insegura que na escola aparento ser mais uma "professora" (daquelas que tanto criticava). Às vezes, não sei o que fazer: não quero continuar assim, mas também não sei como alcançar a escola dos meus sonhos. Mas não se preocupe, não serei daquelas professoras que lhe provocam pesadelos. O que me irrita profundamente é saber que não estou a agir da melhor forma ou como gostaria e não conseguir fazer nada para o evitar. Bem, acho que ter consciência é "meio caminho andado". Para alcançar o sonho, basta-me ser forte, escutar o meu coração e sobretudo o coração dos meus meninos, não é? Obrigada por receber este desabafo. Espero que o próximo seja mais sorridente!?
Tem a palavra um Carlos que se espanta e alegra com o milagre da poesia a todo o instante: ?Estou vaidoso. Aqui vai um texto de uma criança sobre o que é ser criança. É por isso que vale a pena esta arte de educar. Para todos os dias sermos surpreendidos. E pensar que posso ter contribuído, nem que seja um pouco, para este poema...?
Tem a palavra ainda uma das muitas Lilianas cuja incerteza justifica estes meus exercícios de escrita penitencial: ?Sei que é uma pessoa ocupada. Apenas lhe escrevo como desabafo, tal como escreve as suas histórias. Não sei se, quando me conheceu, achou que eu seria uma boa dadora de aulas ou uma aspirante a professora. A verdade é que cada palavra das suas histórias me faz chorar. Não consigo fazer as minhas crianças felizes, não estou feliz com a professora que sou e não sei o que fazer. Professor, a realidade aqui é tão feia. O ano mal começou e já me sinto "sufocada". Mas, graças às suas histórias, e juntamente com as lágrimas, surge a esperança e a vontade de fazer e ser melhor.?
Suspendo as citações para concluir num registo que mais um solstício de Inverno me inspira. Para redenção do sistema, não se pense que o caminho para a Salvação da Escola está feito, se o processo de conversão em cada professor não se realiza. Neste Natal, considerai que não será fácil a um professor alcançar a casa do Pai se, pelos caminhos ou descaminhos do exercício da profissão, o professor não cuidar de procurar a casa do Filho...

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 118
Ano 11, Dezembro 2002

Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

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