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A vida de professor é apaixonante

Com paixão. É assim que Miguel Ángel Santos Guerra vê a profissão docente. E o colaborador da PÁGINA sabe do que fala. Leonês de nascimento e malagueño por adopção, tem um currículo invejável: leccionou em todos os níveis de ensino e dirigiu escolas; diplomado em Psicologia e em Cinematografia, doutorado em Ciências da Educação, é catedrático de Didáctica e Organização Escolar na Universidade de Málaga e dirige o Grupo de Investigação HUM 0365, da Junta da Andaluzia. Pedagogo reconhecido internacionalmente, colabora com diversas publicações e editoras, em Espanha e no exterior, e tem publicados inúmeros artigos e diversas obras de referência sobre organização escolar, avaliação educativa e formação de professores. Mantém um blogue (http://blogs.opinionmalaga.com/eladarve) onde vai tecendo considerações e partilhando experiências. Ao longo de quase duas horas de conversa, Santos Guerra revelou-se um optimista (mas não conformista) – porque sem optimismo “podemos ser bons domadores, mas não bons educadores”.


Já foi professor em todos os níveis de ensino: primário, secundário e superior. Quais são as grandes diferenças entre eles? E as principais dificuldades de cada um?

Cada uma das etapas tem as suas peculiaridades e as suas dificuldades, mas o denominador comum da minha experiência dentro do processo educativo é a paixão. Em todas as etapas. Acho que esta tarefa só se pode desempenhar bem com a convicção de que ela é muito importante para as pessoas e para a sociedade, de que é uma tarefa decisiva. Faz com que vivas de forma apaixonada.
Com as particularidades de cada nível, é preciso uma adaptação às características de cada pessoa. Disse um pedagogo italiano que para ensinar Latim ao João, mais do que saber Latim, é preciso conhecer o João. Acho que em todas as etapas a relação afectiva que se estabelece entre o professor e os alunos é uma constante. Os alunos aprendem daqueles professores que amam e, por sua vez, quando o professor ama a sua missão e ama as pessoas, torna possível o processo educativo e o processo de aprendizagem, porque o verbo aprender, tal como o verbo amar, não se podem conjugar no imperativo. Não se pode obrigar uma pessoa a apaixonar-se por outra, tal como não se pode obrigar alguém a aprender. Despertar o desejo de aprender, despertar o desejo de ser uma pessoa melhor, só se consegue com amor.
Para mim, foi muito importante uma etapa em que dirigi um colégio, durante quatro anos, da qual resultou um livro, «Uma Pedagogia da Libertação – Crónica Sentimental de uma Experiência». Por que é que essa experiência é especialmente importante para mim? Porque além das aulas com grupos de alunos, tinha um projecto de escola com uma equipa de docentes, uma relação com as famílias, uma relação com o professorado, uma relação com o que havia à volta da escola, com as outras instituições. Foi realmente uma experiência muito enriquecedora e muito profunda, embora limitada, porque foram apenas quatro anos.
A etapa da universidade, que foi posterior, também é peculiar. Teve muita importância para mim, porque aprendi muitas coisas. É muito importante manter sempre viva a capacidade de aprender, é muito importante percebermos que todos aprendemos com todos, que o conhecimento é compartilhado, que ninguém é dono da verdade e que o que fazemos é uma busca permanente de conhecimento.
Cada vez me preocupa mais a ética. Muitas vezes penso: se todos os conhecimentos que as pessoas adquirem na escola, na universidade, forem utilizados para enganar, para oprimir os outros, porque pensamos que esse conhecimento é importante? Acho que é muito importante reflectir criticamente sobre a função de ensinar e de educar, em que consiste, se é só transmitir conhecimentos ou ajudar a que se aprendam destrezas. A pergunta fundamental é: para quê?
O conhecimento não é útil se não nos faz melhores pessoas. E algumas vezes – e este é um problema que afecta o sector educativo, o social e o político – com as mesmas palavras achamos que estamos a dizer as mesmas coisas. Por exemplo, muitas pessoas confundem educação com instrução e dizem que alguém é muito bem educado quando apenas se pode dizer que está bem instruído.
A educação tem, a meu ver, duas componentes: a componente crítica, ser capaz de analisar e de entender o que se passa; mas, para que haja educação, tem de haver uma dimensão ética, que consiste em saber conviver, na solidariedade, em ter compaixão para com os desfavorecidos. A educação é o principal elemento que nos afasta da selva, onde o mais forte come e destrói o mais débil e o mais hábil liquida o menos hábil. E uma sociedade democrática, de valores, faz com que a educação se preocupe com todos, especialmente com os que não podem, que não sabem, que não têm…

Vê a Escola como uma organização onde se aprende e um lugar de aprendizagem da democracia. É essa a realidade?

Pergunta-me se o desejável, se o ideal, é o real… Acho que na Escola deveriam realizar-se aprendizagens de convivência. É muito importante que o pensemos para os alunos, mas também para os professores. Quando se coloca uma questão, pensamos no que podemos fazer com os alunos e no que deveriam aprender os alunos sobre aquilo que discutimos, mas não pensamos em nós mesmos. E falando de convivência, pensamos se os alunos são capazes de conviver, de participar, de se relacionarem, de se respeitarem.
E os docentes? Na escola exercitamos essa convivência? Escutamo-nos, ajudamo-nos, respeitamo-nos?… O ruído do que somos é tão forte que impede os alunos de escutarem o que dizemos. Quando lhes dizemos tens de respeitar, estamos a dizer algo que, às vezes, os factos, as nossas acções, a nossa forma de ser na instituição o contradizem. E os alunos o que vêem, o que realmente escutam, é o que somos, não como lhes dizemos que sejam ou como devem ser.
Acho que a Escola tem condições estupendas para a aprendizagem da convivência: tem meninos e meninas, tem ricos e pobres, tem pessoas inteligentes e pessoas desajeitadas, tem negros e brancos, tem uma enorme diversidade, uma multiculturalidade, que permite fazer uma aprendizagem de relações. As condições são estupendas… Mas é assim, acho que tudo se pode fazer melhor.
A realidade que existe na Escola pode ser mais dinâmica, uma realidade em que os alunos participem mais em tudo: no desenho das aprendizagens, na tomada de decisões, na solução dos conflitos. Acho que as aprendizagens seriam melhores se os alunos participassem mais, se não fossem meros aprendizes, profissionais de obediência – vocês têm de fazer o que outros pensaram, o que decidiram para vocês fazerem, e se não fizerem, vão ter problemas. Ou seja, ver a Escola mais como um projecto compartilhado. Muitos dos problemas de hoje nas escolas não se resolvem com mais vigilância, com mais ameaças e com mais castigos. Acredito que se resolvem com mais participação.
Vou dar um exemplo. Uma professora propôs, numa reunião de professores, fazer uma casinha no pátio da escola, para que os alunos brincassem, e uma colega disse-lhe que não seria boa ideia, porque eles a iriam destruir. E a primeira professora disse-lhe: “Se a fizerem eles, não…“ E porquê? Porque é deles. Eles tratariam da vigilância da casa, porque é deles.
Pergunto muitas vezes o que há dos alunos nas suas escolas, o que decidiram eles e até que ponto a consideram sua? Eles são destinatários do que nós, professores, queremos que aprendam e que façam. Há uma metáfora de Holderlin que é muito profunda e que diz que “os educadores formam os seus educandos como os oceanos formam os continentes – retirando-se”. Para que o continente surja, as águas têm de retroceder. Então, o que os alunos dizem aos professores é: ajuda-me a fazer sozinho, ajuda-me a pensar por mim, ajuda-me a saber como comportar-me, a que eu seja autónomo, a que queira estudar, a que queira responsabilidade; ajuda-me, mas ajuda-me a que eu decida, a que eu tenha autonomia. Isto é difícil, porque a tentação é fazer com que pensem como nós, que façam o que nós mandamos, que reproduzam o que nós dizemos e que cumpram as normas que nós lhes damos.
Creio que o desenvolvimento da autonomia e da participação melhoraria essa aprendizagem da convivência nas escolas.

É difícil a vida de um professor?

Bem, a vida de um professor é apaixonante. As dificuldades vivem-se de maneira diferente, com atitudes diferentes. Há uma parede que separa duas turmas, e os dois professores têm o mesmo vencimento, o mesmo ministro da Educação, o mesmo director e alunos parecidos. Mas um está feliz e o outro está atormentado, um está entusiasmado e o outro enraivecido consigo mesmo, com a tarefa, com os alunos.
Digo que esta missão, esta tarefa de educar é essencialmente optimista, porque parte do pressuposto que o ser humano pode aprender, que o ser humano pode melhorar. Este princípio é optimista. Se o rejeito, rompo a educabilidade, pois esta rompe-se quando eu penso que o outro não pode aprender e que eu não o posso ajudar a consegui-lo. Por isso, sem optimismo, podemos ser bons domadores, mas não bons educadores.
Acho que posso classificar a situação do professor como problemática, complexa, difícil, mas se me perguntarem se existe um adjectivo que defina a profissão docente, hoje, eu diria que é apaixonante.
O que se passa com os professores? Primeiro, alguns não queriam ser professores e fizeram-se professores. Queriam ser químicos, matemáticos, geógrafos ou filósofos, mas acabaram por ser professores de Filosofia, de Química, de Matemática. E aí temos de ajudar a que essas pessoas que não puderam ser o que amavam possam amar o que fazem. Isto é muito importante. Depois, a formação desses professores para essa missão tão complexa tem de ser melhor do que habitualmente é. Esta é uma tarefa problemática, mas a formação para desenvolvê-la é muito teórica, muito retórica, é excessivamente academicista.

Então o que falta?

Bem, falta a aprendizagem de competências para se ser professor. Escrevi um artigo que é muito claro para explicar isto. Intitula-se “O currículo do nadador”. É necessário fazer um plano de estudos para que aprenda a nadar. As disciplinas são Química da Água, História da Navegação, Anatomia dos Músculos do Nadador, Campeões Olímpicos de Natação, Economia da Natação, Sociologia da Natação… Sentado, aprendi sem ver a água. A parte prática é analisar um vídeo de Mark Spitz a nadar e fazer um trabalho sobre esse vídeo, observar nadadores, entrevistar nadadores e compilar a informação que andava nos meios de comunicação sobre as Olimpíadas. E agora, com o suficiente na parte prática e na parte teórica, vamos para a água e a água não é uma piscina com a água baixinha e temperada, é um mar agitado, com ondas gigantescas. E se a pessoa não sabe nadar, quando chegar à água, vai afogar-se…
Depois, dar a impressão de que quando se é professor, é-se professor para sempre. É como um médico, que continua a formar-se mesmo depois de ter saído da faculdade, porque os seus conhecimentos ficam antiquados no mesmo dia em que começa a exercer a profissão, porque os conhecimentos avançam, as pessoas mudam, os contextos são diferentes.
Então, para ser uma peça fundamental da qualidade da educação, para desempenhar melhor essa tarefa e para se sentir melhor, precisa de se dedicar a ser professor porque quer; precisa de saber sê-lo, com uma formação adequada; e, certamente, precisa de boas condições: não muitos alunos numa turma, equipas com estabilidade, uma comunidade educativa – e não um professor contra a família, ou a família contra o professor, e a sociedade contra a função do professor…
Há um aforismo africano, que em Espanha estamos a repetir muito, e que diz que faz falta um povo inteiro para educar uma criança. O que quer dizer que se o professor disser “a” e todos os que o rodeiam disserem “b” ou “c”, a voz do professor não terá influência. E é neste sentido que é muito importante não esquecer que o contexto neoliberal, naquilo que hoje é a tarefa da educação, é um contexto adverso. Porque os pressupostos da cultura neoliberal contradizem os pressupostos da democracia. A cultura neoliberal diz: individualismo, competitividade, obsessão pelos resultados, privatização de bens e serviços, esquecimento dos desfavorecidos. E neste contexto é mais difícil ir contra a corrente do que a favor. Digo aos professores que só aos peixes mortos os arrastam a corrente.
Se os professores têm uma vida difícil? Digo que sim e diria que felizmente, porque é quando têm de trabalhar com especial empenho. Imaginemos que no Porto aparece uma epidemia que, dizem, vai matar muita gente. Como reagem os bons médicos diante desse problema? Com mais entusiasmo, com mais trabalho, com mais dedicação, com uma maior sensação de que aquilo que fazem é muito importante e vivem essa situação como um desafio. Os maus médicos, por seu lado, vão lamentar-se do que se passa, maldizer o momento em que se fizeram médicos. A alguns a dificuldade estimula, a outros não.
Muitas vezes levo a ideia aos professores de que o que fazem não é um ensaio geral, é a vida. E pergunto se, no dia-a-dia, quando são professores, se vão fazendo mais felizes ou mais desgraçados? À medida que vão tendo mais anos, como se vão tornando? Mais quê? Mais humildes, mais sábios, mais felizes, mais optimistas, mais comprometidos? Ou essa vivência vai-os fazendo mais tristes, mais pessimistas, mais cansados, mais distantes, menos sensíveis?
Digo que isto não é um ensaio geral, que é a vida, porque não vai haver outra oportunidade de fazer de novo. Ser inteligente é desenvolver a capacidade de ser feliz e de ser boa pessoa. Não é mais inteligente aquele que mais dinheiro acumula e se sente mais infeliz. Por que é inteligente, se é mais desgraçado, se está infeliz? A inteligência não é o armazenamento de conhecimento, mas a capacidade de saber viver honradamente e feliz. Por isso, os professores têm nesta questão algo fundamental para as suas vidas e para a vida dos alunos, porque não é igual trabalhar com um professor feliz ou com um professor amargurado. Os alunos sabem-no muito bem.
Os professores têm de ter consciência de que pode haver não apenas dificuldades, mas também falhas, erros, equívocos, fracassos – com os quais se pode aprender, aprender a fazer bem e aprender humildade.
Por que fracassam alguns projectos? Que erros há, como aprender deles, como reconhecê-los? Há duas coisas fundamentais: a capacidade de auto-crítica e a abertura à crítica. Não se pode explicar todo o fracasso atribuindo-o só aos outros, aos alunos, porque são desajeitados, porque têm más influências fora da escola, porque não estão motivados. A capacidade de auto-crítica, a abertura à crítica, é o que nos pode fazer melhores, o que nos pode fazer aprender, nos pode fazer transformar o que fazemos. E sem ela perpetuaremos as rotinas, os equívocos, as nossas falhas, exigindo que os outros mudem o que fazem para evitar o fracasso, mas nós vamos fazendo o que temos feito sempre... Isto é muito importante, porque uma coisa é comprovar, comprovar o que acontece, e outra coisa é explicar porque acontece.

Mas esse fracasso pode também estar relacionado com o próprio sistema educativo…

Claro. Isto é mais profundo do que parece. Essas explicações têm a ver, muitas vezes, com o poder, porque quem tem poder atribui as causas do fracasso a quem está em baixo. Aos de cima, o professor explica que o fracasso se deve aos alunos. Mas, muitas vezes, os políticos também explicam que o problema é dos professores.

Mas os professores também podem responsabilizar as políticas...

Claro, também está certo. As políticas têm de submeter-se a análise, porque a melhoria das escolas e da educação de um país tem de ser feita por todos os cidadãos e pelos políticos, que muitas vezes promulgam leis que dizem como melhorar o que fazem os professores, em vez de fazer outras coisas como melhorar a formação dos professores, diminuir os alunos por turma, melhorar o vencimento dos professores. O político tem a tentação de fazer leis, como se a lei tivesse o efeito de mudar coisas que não pode mudar, como por exemplo, a atitude do professor. Por lei não se pode. A Escola não muda por decreto.
E depois há a questão das famílias. Há um núcleo da educação que está no âmbito familiar e na colaboração da família com a Escola. No meu blogue tenho um artigo que diz “Sem a família, impossível”. Se um aluno fracassa nos estudos e, quando chega a casa com as notas, a família diz que a culpa é dos professores, ou se tem mau comportamento na escola e a família diz que o problema é do professor, essa criança não tem solução. Mais: os seus pais estão a alimentar um monstro, e os primeiros a serem devorados por esse monstro são eles.
A tarefa da família é imprescindível, mas a peça-chave para a melhoria são os professores. Têm que estar convencidos da magnitude e da importância do que fazem. Digo que ensinar não é só uma forma de ganhar a vida, é sobretudo uma forma de se ganhar a vida dos outros. Vou citar um livro, excelente, de Daniel Pennac («Mágoas da Escola»): “Salvaram-me a vida três professores que tinham uma característica comum: nunca soltavam a sua presa”, ou seja, nunca abandonavam o empenho por um aluno. Penso que cada professor, na sua aula, tem esse desafio relativamente a cada um dos seus alunos.

Um das suas áreas de interesse é a avaliação. O que defende?

Parece-me que fazer avaliação é muito importante, mas o que habitualmente acontece é que ela é entendida como algo que concerne quase exclusivamente aos alunos. Mas deveriam avaliar-se também os professores e a instituição, porque a auto-avaliação e a avaliação das escolas é um caminho para que a instituição melhore, para que melhore a organização, para que melhorem os profissionais.
A avaliação deve ser entendida como um instrumento para compreender e para melhorar, não tanto como um juízo, não como uma competição, como uma ameaça, mas como um instrumento que permita saber o que se passa e melhor através dessa compreensão. É preciso saber porquê, para quê e como se faz.

E sobre a avaliação dos professores pelos seus pares?

As práticas educativas podem ser observadas e analisadas por outros profissionais e por processos de auto-avaliação, porque os professores também sabem o que fazem e todos os elementos de observação, de opinião, facilitariam a compreensão do fenómeno. Mas a avaliação dos professores deve ser feita no quadro da organização, porque a acção do professor não decorre de forma isolada, mas no contexto da instituição.
Outra coisa a respeito da avaliação – deve ser educativa. Isto é muito importante, porque a avaliação pode estar carregada de perversões. Por exemplo, pode gerar mecanismos de poder, constituir uma ameaça ou castigar...
Eu acho que a avaliação não deve ser um castigo, mas uma ajuda. Ela é um fenómeno para aprender e para melhorar, não para competir ou somente para alcançar resultados, sem ter em conta processos, os valores. Quando se fala de avaliação, às vezes, digo que mais importante que fazê-la e do que fazê-la bem é saber a quem beneficia e que valores se desenvolvem, que valores ela gera ou destrói.
Entendo a avaliação como uma faca. Pode abrir, cortar, mas também pode ferir, matar. Depende de como se utiliza, e eu não defendo toda a avaliação, mas sim uma forma determinada de a entender e de a fazer.

Outro tema muito actual é gestão das escolas. Fala-se de uma lógica mercantilista, economicista… O que pensa sobre isto?

Tenho sobre este assunto uma posição muito clara. Aqui em Portugal vi o ranking de escolas, da qualidade das escolas, e esse ranking foi feito através de um processo de medição de resultados obtidos pelos alunos através de provas estandardizadas. Esse sistema é muito perigoso. Porquê?
Porque se eu selecciono os melhores alunos, das famílias com mais dinheiro, das famílias mais cultas, com mais expectativas, eu tenho bons resultados. Mas uma escolita humilde, com alunos de uma classe desfavorecida, não deixa de ter qualidade porque os alunos têm piores resultados. E isso coloca-nos numa dinâmica terrível, que é dar mais aos que mais têm na vida – dinheiro, posição, cultura, expectativas de futuro – e dar menos a quem não tem.
Creio que a Escola devia ajudar a eliminar as desigualdades de hoje e não a potenciá-las. Devia ser um instrumento que favorecesse a equidade e não que incrementasse as diferenças, porque assim alimenta a injustiça. Os alunos que já estão bem posicionados na sociedade, que têm cultura, cujos pais têm estudos e dinheiro, conseguem estar numa boa escola, ter êxito. Os que não têm, não importa se são bem sucedidos ou se fracassam. E acho que isto é importante: as crianças de Portugal têm direito à escolarização, mas, sobretudo, têm direito a ter êxito na escolarização.
A mercantilização pode analisar-se ao nível macro das escolas e num centro só. Há um livro de Christian Laval que se intitula «A escola não é uma empresa» e, efectivamente, há o risco de se considerar o trabalho e a organização da escola de um ponto de vista empresarial e que o director deve ser um gestor. Eu não estou de acordo, o que não significa que não importe que funcione bem, mas não é igual a autoridade numa escola e a autoridade numa empresa. A palavra autoridade provém de um verbo latino que significa fazer crescer, ajudar a crescer. Tem autoridade aquela pessoa que ajuda a crescer, não a que silencia, ameaça, castiga – essa pode ter poder, mas não autoridade. E o líder de uma escola tem de ser uma autoridade educativa.
Vou escrever um livro sobre este tema e vai intitular-se «As feromonas da maçã». Se se põe uma maçã num saco com frutas verdes, essas amadurecem pela influência das feromonas da maçã. Eu digo que a direcção de uma escola deve ser como uma maçã que ajuda a amadurecer quem está ao seu redor. É uma influência silenciosa, constante, eficaz, benéfica, que cria relações e uma dinâmica que ajuda ao crescimento, ajuda ao desenvolvimento.

Mas é preciso apresentar resultados…

Pois, o problema está em que o contexto neoliberal impõe a obsessão pelos resultados, a competitividade entre as organizações. Às escolas chegam algumas dinâmicas em que os processos têm menos importância do que os resultados, e a avaliação converte-se num fim em vez de ser um meio, perverte-se. Por exemplo, com os relatórios PISA, o que acontece é que a finalidade é ganhar postos no ranking. O PISA é um processo de avaliação para que se possa melhorar, mas converteu-se num fim. E agora há professores e escolas que passam a vida a preparar-se para essas provas, esquecendo-se do que é fundamental.

Qual é o estado da educação?

Eu tenho uma visão optimista da realidade, da vida. Acho que temos avançado muitíssimo. Vou explicar com um exemplo...
[Miguel Santos Guerra pega no caderno e com a caneta pinta um ponto no centro da página. Pergunta-me o que vejo, ao que respondo um ponto. E o catedrático continua…]
Mas aqui está uma folha branca, com um ponto. Só viu um ponto, mas há muito mais branco do que o ponto…
Bem, eu acho que avançámos muito, Portugal, Espanha, o mundo. Hoje é o Dia Internacional da Mulher [8 de Março]. Por exemplo, avançámos muito desde que, não faz muitos anos, a mulher não podia votar, não podia ter direito ao trabalho, aos estudos. Mas ainda há muito para fazer. Isto do ponto é importante. No momento em que estamos, com tantos problemas, estamos num momento muito mau, mas não se reconhece todo o avanço que foi feito.
Quando eu era criança, quando era estudante, lembro-me de como eram as escolas do meu país, como era a educação e como era a formação dos professores. Não tem comparação com o que temos hoje, com o que hoje existe, com o que se avançou. Por exemplo, em termos quantitativos, quantas crianças há numa escola? No Ensino Secundário? E quantos são universitários? E também em termos qualitativos: como se faz o trabalho? Há aqui uns avanços impressionantes, extraordinários.
A minha visão é optimista, mas não conformista. Temos de avançar comprometidos, porque ainda há coisas para fazer.

Quais são essas coisas?

Para mim, a melhoria da formação de professores é um ponto muito importante (a inicial e a permanente). A consideração da educação como algo prioritário. Há que aumentar os orçamentos dedicados à Educação, porque isso vai converter-se na melhoria das condições das escolas, em mais inovação educativa, em mais investigação educativa.
Acho ainda muito importante que as famílias entendam que têm muito a dar às escolas, colaborando numa comunidade educativa que não veja a tarefa de educar como sendo somente dos professores. Também acho que se a Escola avança por um caminho e a sociedade não for por esse, o avanço será menor.
Voltando ao tema da mulher, se a Escola educa para a igualdade de oportunidades entre meninos e meninas, e se os empresários, para darem trabalho a uma mulher, perguntam se vai casar e ter filhos e lhe pagam menos…
A escola está a fazer a sua tarefa, mas o avanço é pequeno, porque a sociedade avança noutra direcção. De modo que há coisas que se podem fazer, que se devem fazer – que se devem fazer com urgência – e há uns avanços que não se podem esquecer, reconhecendo o que fizeram muitos profissionais, durante muito tempo, de forma silenciosa, de forma humilde.
Não nos podemos focalizar apenas no ponto negro, porque a folha branca está aqui. Esse reconhecimento daria a sensação de um maior entusiasmo para seguirmos em frente, porque com o pessimismo, o desalento, o lamento, avança-se pouco. Estou convencido de que os problemas da crise em que vivemos, os problemas das sociedades, não se resolvem nem nos despachos ministeriais, nem nas multinacionais, nem nos quartéis, nem nos bancos ou nas igrejas. Diria que nas escolas, na educação.

Em 2009, num artigo para a PÁGINA, falava da necessidade de se sair da crise, da incerteza no futuro e de falta de confiança. Em 2011, continua a haver crise de confiança?

Sim, essa falta de confiança existe e por isso estamos a demorar tanto a sair da crise. Para se sair de uma situação problemática deve-se ter a convicção de que se vai sair, a convicção de que se pode sair. É isso que dá optimismo.
No livro «A força do optimismo», de Luis Rojas Marcos, há uma história de um tenente suíço que mandou um destacamento de soldados numa incursão a uma montanha gelada. Quando o grupo está a cumprir essa difícil tarefa, há uma tempestade de neve, de modo que todos pensam que ninguém se vai salvar. Mas ao fim de cerca de três semanas aparecem todos, sãos e salvos, para surpresa e alegria do tenente e das famílias dos soldados, que os davam como mortos. O tenente pergunta-lhes como foi possível terem encontrado a saída com a enorme tempestade, ao que um soldado responde que um deles tinha um mapa. O tenente quis ver esse mapa. A acção desenrola-se na Suíça, mas quando o tenente estuda o mapa, descobre que é dos Pirenéus...
O mapa não os salvou, porque não era daquele território; o que os salvou foi o optimismo gerado pelo mapa. Graças a essa esperança, a essa confiança, encontraram a saída – geograficamente, o mapa não os salvou, mas salvou-os psicologicamente, porque gerou optimismo nos seus corações.

E é essa confiança que falta, para avançar com o que está por fazer?

Uma professora disse que se nós, professores, contássemos, partilhássemos as coisas boas que acontecem connosco teríamos uma fonte enorme de energia e de optimismo, mas estamos mais habituados a compartilhar os problemas, as dificuldades. Se os professores contassem por escrito ou oralmente as coisas boas que acontecem na educação, tínhamos uma fonte inesgotável de entusiasmo, de optimismo, de energia, de força.
Parece-me muito preocupante que haja tanta obsessão pelos problemas, pelas dificuldades, pelo fracasso, e menos por tudo o que se faz, tudo o que se diz, que é muito, para melhorar a nossa vida. E quantas emoções…
Quando fui professor no Ensino Secundário, em Tui, nos anos 70, fundei um cineclube. Este ano, os alunos que então o frequentavam criaram um cineclube na cidade. Essa semente que então se plantou floresceu, neste caso, 40 anos depois. No meu blogue tenho um artigo que se chama “Meu querido cineclube”. Alguns alunos que então se interessaram por cinema, que viram que era muito importante, que aprenderam a desfrutar, aprenderam a expressar-se nessa linguagem, tantos anos depois…
É emocionante. E como esta, há milhares de experiências que seguramente todos os professores têm na sua vida. Essa partilha também ajudaria os outros.

Esta edição inclui uma reportagem sobre pobreza infantil. É um dos muitos problemas e das realidades sociais com que os professores se deparam. As escolas estão preparadas para lidar com estas questões?

Há aqui um problema – a Escola está separada da vida, está distante dos problemas da realidade. Eu vejo aí um problema: os livros, os conhecimentos inertes que, por vezes, não têm que ver com a realidade. A Escola não pode permanecer separada dos problemas da vida, porque a Escola é para a vida.
Há um artigo que conta a história de uma professora de Biologia que pergunta a uma adolescente quantas patas tem um artrópode. E a adolescente, suspirando, diz-lhe: Ai senhorita, quem me dera ter os problemas que a senhora tem…
Isto é um exemplo muito certeiro. Para mim, para a minha vida, isso das patas dos artrópodes, o que significa? A Escola tem de ser uma escola de vida e para a vida. É preciso entender a realidade: porque há pobres e ricos, como se evitaria essa diferença, porque uns estão condenados a ter tudo e outros não. A Escola tem de reflectir sobre isso e sobre o que se pode fazer. Não entendo uma escola que esteja afastada da vida, dos seus problemas, das suas realidades…

E sabe lidar com esses problemas?

Por isso digo que a Escola tem de melhorar, tem de avançar, tem de abrir-se à realidade que está lá fora. A Escola está carregada de inércias, pressionada desde cima por um programa que os professores têm de desenvolver com pouca autonomia.
Penso que as escolas têm de ter mais autonomia, mais autonomia curricular, naquilo que se faz lá dentro, mais autonomia organizativa e mais autonomia económica, porque está demasiado prescrito o que faz, o que têm os alunos de estudar, os horários, os exames… Está tudo definido. Não há nenhuma instituição na sociedade com mais prescrições do que a Escola.

Mas não deve haver uma orientação?

Sim, porque estamos a falar de um currículo básico para todo o país. Mas dentro de uma margem de autonomia. Mas quando não há, é uma contradição, porque tem de se adaptar o programa e a metodologia aos alunos, tem de estar conectado com os seus conhecimentos prévios. Isso exige que se tenha em conta essa realidade concreta, não que se legisle o mesmo para todos, em todos os sítios. Não se pode comparar uma escola rural com uma escola de Lisboa ou do Porto…
Acho que devia haver mais autonomia. Se não há autonomia, também não há responsabilidade.

Para terminar, como definiria uma escola perfeita?

Seria uma comunidade educativa que tivesse em conta o lugar onde está inserida, que conhecesse bem a sua realidade, porque sem conhecer o contexto não se pode entender bem o texto. Seria uma escola com muita participação dos alunos, com um programa que supusesse uma preparação para a vida, com dinâmicas inovadoras, não rotineiras, integrada por profissionais que amassem a sua profissão, dirigida por um líder ou por um conjunto de pessoas que ajudassem os outros a crescer. Uma instituição criativa, com capacidade para se reinventar, flexível, com possibilidade de modificar as coisas que estão a ser feitas, com uma enorme capacidade de exigência, com capacidade de auto-crítica.
Às vezes comparo as escolas com barcos em alto mar. A tripulação está receosa, mas perguntamos para onde vai o barco e eles respondem que não há tempo para pensar [risos]. Digo que não há nada mais estúpido do que lançar-se com a maior eficácia na direcção errada. E muitas vezes penso onde vamos muito depressa.
Queremos que sejam solidários, mas são? Queremos que sejam criativos, mas são? Queremos que sejam pessoas com espírito crítico, mas são? Queremos que tenham conhecimento, está bem, mas quando saem da instituição, é muito importante que tenham capacidade de auto-crítica, de reflexão sobre o que estão a fazer. Se quero que sejam participativos e se tudo o que fazem é obedecer, assim não se pode conseguir.
Diria também que deve ser uma instituição aberta, em dois sentidos: que saia, que se encontre com o que está à sua volta, e que o que está à sua volta entre, que o exterior entre na Escola, que não esteja isolada. Recordo que quando era director de uma escola, os miúdos saíam e uns iam à frutaria, outros a um banco, à farmácia, a outras instituições. E estavam lá a observar, a perguntar, a analisar. Depois, o vendedor de fruta, o director do banco, entravam na escola, havia interacção com a instituição. Porque se não, corre-se o risco de o programa ser só de coisas inertes. Para eles, não faz nenhum sentido repetir os livros, às vezes, sem os entenderem...

Entrevista conduzida por Maria João Leite


  
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