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Cidadania, europeísmo e globalização

Conhecidas as conclusões da Cimeira da Comunidade Europeia, realizada, nos últimos dias de Dezembro passado, sob a presidência da França, quem sentir responsabilidades pedagógicas pela formação de um novo espírito de "cidadania" (porque a "cidadania", no seu significado original, jurídico-político, é uma imanência do próprio Estado) há-de ter reflectido muito no que dirá aos seus formandos sobre o que é ser, hoje, "cidadão português" e "cidadão europeu" - agora que esta designação foi introduzida na retórica política.

Analistas de diferentes origens ideológicas foram unânimes na apreciação de que os parceiros da Comunidade, demográfica e economicamente mais pequenos, como Portugal, viram reduzida a sua capacidade de representação decisória, diante do fortalecimento da posição dos mais populosos e ricos. Mas enquanto alguns desses analistas aceitaram pragmaticamente que Portugal, apesar do peso histórico que lhe advém do facto de ser um dos Estados mais antigos da Europa, não poderia obter melhor resultado, outros mostraram-se inconformados com a consequente perda de soberania que as conclusões da Cimeira traduzem no imediato e, mais gravosamente ainda, perspectivam para o futuro.

Entendendo-se, como informa qualquer dicionário, que "cidadania" é o mesmo que "nacionalidade", - no sentido dos direitos e deveres que, por essa condição ou privilégio, cumpre ao cidadão exercer e respeitar - a primeira questão que se coloca, desde já, ao formador (professor, encarregado de educação ou personalidade pública) é igual à que ocorrerá ao cidadão comum que esteja atento aos modernos avatares da nossa existência como nação livre, soberana e una, sem complexos de identidade nem pendências de fronteira: o que é ser "cidadão português", hoje, num espaço transnacional de "cidadãos europeus", porém desiguais na riqueza e no poderio, em que a uma minoria de Estados ricos, com o privilégio do veto, se outorga o direito de decidir sobre as regras de uma parceria feita de alguns ricos e muitos pobres ou remediados.

Em conformidade com a matriz ideológica dos formadores, as respostas serão variáveis: alguns dirão que a Comunidade Europeia é como uma sociedade por quotas, em que, possuindo uns sócios mais capital do que outros, a gestão do negócio será determinada pelos detentores do maior capital; outros dirão que, para se afirmar em plenitude e não correr o risco de desintegração, a Comunidade não poderá hostilizar nem marginalizar excessivamente a maioria dos seus membros, porque, embora não sendo ricos nem poderosos, garantem a força virtual da coesão; outros ainda poderão dizer que, constituindo também a Comunidade Europeia um dos pólos do sistema económico globalizante que, independentemente do poder dos Estados, se vai assenhoreando dos verdadeiros centros de decisão consubstanciados no domínio dos meios de produção e distribuição de equipamentos e bens de consumo, qualquer brecha ou clivagem no corpo da Comunidade se traduzirá por um enfraquecimento da solidez do poder político do Estado face ao poder económico do Capital.

E quantas mais projecções se poderiam fazer sobre o futuro da Comunidade, em acordo com as visões idealistas, pragmatistas, optimistas, pessimistas ou utopistas dos futurólogos!

Mas um formador precisa de dar respostas para ter credibilidade, e a dúvida (mesmo a "metódica", cartesiana) não é pedagógica. Que fazer, então, se tudo pode ser duvidoso, mas o formando exige uma certeza que o impeça de desistir de projectos de vida e do seu empenhamento com vista ao futuro, já que, parafraseando o Poeta, nada vale a pena se a alma for pequena?

Todos os raciocínios hão-de partir da análise da história e da ideologia (quem disse, diletantemente, que se chegou ao fim da História e à morte da Ideologia?) que estão na génese da Comunidade, iniciada virtualmente em 1949, tendo como embrião um Conselho da Europa então formado por dez países que haviam sofrido, em maior ou menor grau, os efeitos devastadores da Segunda Guerra Mundial: Bélgica, Dinamarca, França, Holanda, Inglaterra, Irlanda, Itália, Luxemburgo, Noruega e Suécia.

Vivia a Europa a angústia de um tempo de novos medos e incertezas: ainda nos escombros da guerra terminada quatro anos antes, e passada a euforia das alianças circunstanciais entre os Aliados e a União Soviética, para liquidar o inimigo Nazi, a desconfiança voltava a instalar-se numa Europa colocada perante duas ideologias que, por vias opostas, prometiam reconstruir o Mundo à sua maneira, mediante a implementação de um novo Espírito Europeu e de um Homem Novo.

Já existia a Organização das Nações Unidas, constituída em 1945, logo após o termo da Segunda Guerra Mundial, destinada a ser o árbitro dos conflitos internacionais, numa remodelação da anterior e insuficiente Sociedade das Nações, fundada em 1920, pelos países vencedores da Primeira Guerra Mundial. Mas, como aquela, depressa a ONU se mostrou incapaz de dirimir as grandes questões ideológicas que dividiam o Mundo em dois blocos inconciliáveis: de um lado, a defesa da liberdade do indivíduo, considerado motor do progresso, num Estado arbitral de conflitos entre as classes tradicionais; de outro, a defesa do colectivo sobre o individual, num Estado empenhado na abolição das classes, consideradas como fautoras dos desequilíbrios que geravam os conflitos sociais, incluindo as guerras.

Com a contribuição decisiva dos Estados Unidos para a vitória dos Aliados e para a reconstrução dos países devastados pela guerra, através de um famoso Plano Marshall, a breve trecho os Americanos se tornaram o "fiel da balança" das relações entre a Europa Ocidental (liberal e capitalista) e a Oriental (soviética e socialista) e, no trilho dos ingressos financeiros que permitiram a recomposição do tecido económico dos principais países europeus, introjectaram na "tradição" europeia novos modelos de vida (american way of living) e de desenvolvimento (através do capital multinacional).

A posição dilemática em que se encontrou a Europa Ocidental, compreendida do Atlântico aos Urais, foi analisada, durante duas décadas, nos célebres Encontros Internacionais de Genebra, que se realizaram, a partir de 1946, sob a égide das autoridades suíças e da UNESCO. Eminentes figuras das ciências humanas e sociais, de diversas nacionalidades e ideologias, debateram as questões mais acutilantes que inquietavam a Europa e a humanidade ainda afundadas num arcaico maniqueísmo, paradigmaticamente iniciadas com o tema: "O Espírito Europeu". (Os relatos destes Encontros chegaram a Portugal em edições das Publicações Europa-América, sendo algumas delas retiradas da circulação por intervenção da autoridade policial e censória).

É no debate de 1953, subordinado ao tema "A Angústia do Tempo Presente e os Deveres do Espírito", que o formador interessado em compreender as conclusões e os meandros da referida Cimeira encontrará, logo na intervenção de um fundador do antigo Conselho da Europa, embrião da actual Comunidade, - Robert Schuman - matéria suficiente para poder verificar, hoje, que a Comunidade sofre dos mesmíssimos condicionalismos que sofria há cinquenta anos, desde a sempre controversa supremacia dos países "fortes" à limitada representação dos países "fracos".

Uma certeza, contudo, já existia como "razão fundadora" da Comunidade: a necessidade de a Europa da "tradição" humanista-cristã se proteger dos supostos "Satãs" que se desenhavam no Leste soviético, no Oriente chinês e no Levante muçulmano. Para se resguardar das imaginárias ameaças, a Europa precisava de se "armar" cultural e militarmente, dando assim cobertura ao dilema - lembrado por um dos participantes - assumido, nos finais do século XIX, pelo então primeiro-ministro conservador da Inglaterra, Disraeli, obreiro destacado do imperialismo colonial britânico no Oriente: "Os povos são governados pela tradição ou pela força."

Mas quem, num conjunto de países irmanados por semelhantes interesses e as mesmas angústias, decidiria, na hora última, se a solução dos conflitos havia de contemplar a "tradição" ( o "Espírito Europeu") ou a "força"?

Robert Schumann já reflectia, na altura: "A força, caso mereça ser mantida, deve ser também, por sua vez, construtiva. O veto é, em suma, a expressão do egoísmo das grandes potências ou do seu medo e da sua ansiedade de se verem vencidas em número pelas pequenas potências. Países como os Estados Unidos ou a U.R.S.S. defendem com igual energia o direito de veto. Alguns países que por si só representam uma enorme fracção da potência do mundo e dos efectivos em causa não desejariam submeter-se à igualdade dos deveres, à República de São Salvador ou a qualquer outra pequena república da América do Sul ou da Europa. Nada há de vexatório em evocar esta disparidade, esta desproporção de recursos e de responsabilidades."

Schuman acreditava que, "com fórmulas novas", mais cedo ou mais tarde, a Comunidade chegaria a uma solução de consenso, já que "a unanimidade se tornaria sempre indispensável." Na Cimeira de Nice, a delegação de Portugal repetiu, por outras palavras, as reflexões que Schuman fazia em 1953, na Suíça.

O formador de "cidadãos" asseverará aos seus formandos que a História não se repete, mas não deixará de fazer uma ressalva banal: causas iguais produzem efeitos iguais. Os medos de ontem, com a mesma ou semelhante prefiguração de um Outro que resistirá, até ao limite da sua "força", às imposições de uma "tradição" estranha, pairam, ainda hoje, sobre o horizonte; o poder avassalador e globalizante que, ontem, era representado, numa ideologia transnacional, pela União Soviética socialista, e numa paranóia imperial, pela Alemanha nazista, é hoje, embora com formato democrático (contudo, e contraditoriamente, reservando prerrogativas de veto), substituído pelo poder igualmente avassalador e globalizante dos países mais ricos - mas só até àquele hipotético futuro em que os conglomerados financeiros multinacionais avassalarão os próprios países, tornando em instrumentos do seu poder real os próprios Estados.

Um formador de "cidadãos" de Portugal, da Europa ou do Mundo reflectirá, apreensivamente, sobre a importância da "tradição" que questiona a transformação do Homem que ama, sofre e sonha, num apátrida, num instrumento, num consumidor ou num número - filho-clone de um "Admirável Mundo Novo" que, como o de Aldous Huxley, poderá ser um mundo de robôs, de acéfalos e de deprimidos, no qual, em momentos de imponderável crise existencial, a felicidade se recupera e a angústia se elimina com pastilhas de mescalina distribuídas gratuita e preventivamente pelos poderes constituídos, para que a paz e a ordem se mantenham.

Leonel Cosme
escritor, investigador


  
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Edição:

N.º 99
Ano 10, Fevereiro 2001

Autoria:

Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto
Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto

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